Cinema Ritrovato redescobre filmes de Damiano Damiani e Niki de Saint Phalle

Festival exibe ainda raridades de Jean Renoir, Ernst Lubitsch, Ousmane Sembene, Teinosuke Kinogasa e Mario Monicelli

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Bolonha

Não se pode fazer um balanço desta 37ª edição da Mostra Cinema Ritrovato sem falar de "Un Revê Plus Long que la Nuit" —algo como "Um sonho mais longo que a noite", em português—, de Niki de Saint Phalle. Em parte porque se trata de um filme quase secreto, lançado apenas na Franca em 1976 e agora reencontrado e restaurado.

Em parte, também, porque se trata de uma artista plástica importante e porque, justamente, não faz obra de artista e sim de cineasta. Isto é, apesar dos meios modestos, sua imaginação aqui é do cinema, não de quem usa o cinema como escada para fazer e mostrar sua obra.

Uma Bala para o General
Cena do filme 'Uma Bala para o General', de 1967, dirigido por Damiano Damiani - Reprodução

É verdade que ela é uma cineasta experimental —ainda que narrativa—, que usa bastante suas esculturas e desenhos, num conjunto que parece, de início, pertencer mais ao surrealismo que ao novo realismo a que foi ligada.

Há, de início, uma menina, Camélia, perdida entre máquinas estranhas e um jardim com obras de Saint Phalle. Depois, a menina recebe a visita de uma feiticeira, ou fada, se preferir, que lhe diz para formular um desejo.

Quero ser grande, diz Camélia. A feiticeira adverte que, uma vez grande, ou adulta, nunca mais poderá reencontrar a infância. Camélia insiste e reaparece em seguida como uma adolescente resplandecente. Importa é que, ao crescer ela é projetada no mundo da sexualidade. Ou, mais especificamente, do falocentrismo.

Estamos então numa espécie de "Alice no País das Maravilhas", em que o terror vem, essencialmente dos homens, de seus enormes, nada delicados porém vazios falos.

Desde então, o filme insere um universo masculino decrépito e nada satisfatório no mundo de Saint Phalle, o que produz um efeito intrigante, tanto mais que parece irromper como explicação dos traços e cores da escultora, tão claramente evocativos da infância, isto é, da infância que Niki vê como perdida para sempre. Em suma, um filme único e cheio de energia.

A direção do festival corrigiu a barbeiragem do meio da semana e programou duas sessões do "Quién Sabe?", de 1967 e no Brasil batizado de "Uma Bala para o General". Aplausos entusiásticos para o faroeste spaghetti de Damiano Damiani, o único que ele fez.

Ali se encontra um líder guerrilheiro, vivido por Gian Maria Volonté, seu grupo e um estranho americano todo de terno, interpretado por Lou Castel, em ação durante a Revolução Mexicana.

É atípico mesmo como faroeste spaghetti. O engajamento logo faz lembrar que o filme é de 1966, e a referência maior parece ser Che Guevara, embora Volonté seja um mexicano bem de cinema, bem escrachado.

Trata-se de levar armas para um general. E dinheiro? Também, talvez. Pois à medida que caminha o filme se enche de ambiguidades, a ponto de fazer lembrar filmes de Glauber Rocha.

O fim de semana ajuda, no todo, a um balanço riquíssimo do que foi este 37° Ritrovato. Foram dois filmes de Ernst Lubitsch, incluindo "O Leque de Lady Margarida", de 1925, e "O Círculo do Casamento", de
1923.

Esse último é uma comédia refinada, de que o alemão foi o mestre absoluto. O primeiro, um melodrama que em outras mãos renderia um dramalhão ridículo, mas que dirigido por Lubitsch consegue ser leve e até alegre aqui é ali.

Um Renoir mudo, "Tire au Flanc", de 1928, em tom de comédia maluca, veio da França. Um Renoir nos EUA —"A Mulher Desejada", de 1947—, um Tay Garnett, um Frank Borzage... defenderam Hollywood com brilho e invenção, coisa que Rouben Mamoulian, francamente, não fez muito.

A Itália do fim de semana também foi plena, graças, sobretudo, a Mario Monicelli e Luigi Comencini. O Japão de Teinosuke Kinugasa raramente entusiasmou, raramente decepcionou. Mas a África, com o "Ceddo" de Ousmane Sembene, num restauro deslumbrante do filme de 1977, arrasou.

Por fim, a Itália fascista. "L'Ombra" de Mario Almirante, de 1923, parece um prefácio dos filmes alienados fascistas, os célebres telefones brancos. Mario Almirante, um fiel de Mussolini, nos levou essa nulidade e, no mais, um filho que se tornaria politico neofascista.

No fim, sobra a sensação de plenitude de cinema. Com ela, vem junto a frustração por tudo que não deu para ver.

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