Haiti político e cósmico se fundem entre pintura e dança em mostra em Lisboa

Exposição 'Panamérica, Lavro e Dou Fé! Ato 1: Haiti o Ayiti' traz imersão no vodu e na história do país caribenho

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Lisboa

Com a proposta de exaltar as tradições e a cultura do Haiti por meio de diferentes manifestações artísticas, da dança às artes plásticas, o projeto "Panamérica, Lavro e Dou Fé! Ato 1: Haiti o Ayiti" está em cartaz na Galeria da Boavista, em Lisboa, até setembro.

"O Haiti só costuma estar presente nas nossas vidas naqueles contextos de miséria e violência. Por que nós não sabemos nada do Haiti? Por que o país não é ensinado nas escolas? Nós partimos desses questionamentos e decidimos ajudar a romper esse ciclo", afirma o artista plástico brasileiro Leandro Nerefuh, que idealizou a iniciativa ao lado da coreógrafa e dançarina argentina Cecilia Lisa Eliceche.

'Altar Ayiti', obra em exposição na mostra 'Panamérica, Lavro e Dou Fé! Ato 1: Haiti o Ayiti', em Lisboa - Luciano Cieza

A dupla embarcou em uma imersão no país caribenho que incluiu viagens, pesquisa bibliográfica, conversas com acadêmicos e até uma temporada na casa de um alto sacerdote de vodu, uma das principais tradições religiosas haitianas.

"Esse convívio foi a nossa maior universidade. Estivemos lá e pudemos aprender diretamente com eles. Foi muito rico", diz Eliceche, a coreógrafa.

A experiência contou ainda com uma série de colaborações de haitianos e de artistas de outras nacionalidades.

O resultado está agora expresso em diferentes meios —pinturas, instalações, bordados e apresentações de dança.

"Nós montamos um programa ambiental, a gente não chama de exposição. O foco não é uma obra ou outra, mas sim um conjunto de coisas que nós distribuímos por esses espaços", afirma Nerefuh, o artista plástico.

'Ayizan, 1791', cetim em exposição 'Panamérica, Lavro e Dou Fé! Ato 1: Haiti o Ayiti' - Luciano Cieza

Na entrada, os visitantes precisam ficar descalços ou usar uma proteção nos sapatos. As peças estão divididas em dois andares, conectados pela obra "Poto-Mitan" —um longo fio de miçangas costuradas que representa o artefato religioso de mesmo nome. É um elemento central no culto vodu, considerado essencial para a conexão com todas as entidades.

No primeiro piso, as intervenções vão, literalmente, do chão ao teto. Enquanto o solo é revestido com um material espelhado que lembra o azul das águas, no alto há bandeiras brancas de papel e cetim, que fazem referência ao céu.

No andar superior, o ambiente ritualístico é aprofundado, com diversos elementos alusivos aos cultos haitianos.

Em "Altar Caboclo", os artistas usam a divindade da umbanda para ilustrar as conexões entre as populações da América Latina.

Vista de exposição 'Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1: Haiti o Ayiti' na Galeria da Boavista - Luciano Cieza

"Esse altar caboclo é para ligar as histórias, mostrar que não se pode isolar as geografias, as geopolíticas", diz o artista plástico Leandro Nerefuh.

Segundo Eliceche, a obra também é uma forma de homenagear a força das populações originárias em geral.

"Para algumas antologias religiosas afro-brasileiras, os caboclos são os donos originários da terra e das florestas. No Haiti, a própria escolha do nome do país feita pela população na independência [enquanto colônia, o território era conhecido como São Domingos], que decidiu por um nome originário, é anterior à colonização", diz a artista.

Além das artes plásticas, o projeto tem ainda apresentações de dança, batizadas de oferendas. "Através da nossa dança, tentamos nos conectar com algumas das vibrações e com as forças que são cultivadas no Haiti", afirma Eliceche.

Além da coreógrafa argentina, outras duas artistas participam das oferendas —a brasileira Emily da Silva e a cabo-verdiana Admila Cardoso.

O mobiliário também foi idealizado pelos artistas. Os bancos de madeira espalhados pelos dois andares são de inspiração caiçara.

O projeto conta ainda com um livreto explicativo —disponível em quatro idiomas, português, inglês, espanhol e crioulo haitiano— que dá grande destaque às questões históricas e às posições políticas dos artistas.

As poucas referências à história haitiana, sobretudo à revolução que levou à independência, oficializada em 1804, seriam, na opinião dos artistas, mais uma violência contra um país que ousou ser livre e se opor à opressão da escravidão.

'Ezili', de 1991, cetim em exposição - Luciano Cieza

Há críticas explícitas, por exemplo, à pesada indenização imposta pela França, à invasão e à ocupação americana do Haiti, que perdurou de 1915 até 1934, que foi uma das mais longas da história dos Estados Unidos. Aborda criticamente ainda até à atuação de militares brasileiros no comando da Minustah, como ficou chamada a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti.

O manifesto também não poupa críticas à Organização das Nações Unidas, a ONU, e relembra que foram soldados a serviço da entidade que introduziram a bactéria da cólera no país, em 2010, durante a missão de paz que se seguiu ao grande terremoto ocorrido no mesmo ano.

O projeto tem entrada livre e está em cartaz no centro cultural que integra a rede de Galerias Municipais de Lisboa, até 18 de setembro.

Diretor das Galerias Municipais, o curador de arte alemão Tobi Maier, que já morou no Brasil e foi um dos curadores-associados da 30ª Bienal de São Paulo, exalta a pluralidade e a diversidade do trabalho.

A mostra "Panamérica, Lavro e Dou Fé! Ato 1: Haiti o Ayiti" integra programas que tentam abordar pensamentos descolonizadores nas Galerias Municipais.

A junção interdisciplinar entre dança e artes visuais do projeto reflete a pesquisa artística no Haiti e revela a riqueza cósmica do contexto do Caribe em vários capítulos", ele afirma.

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