Como uma marionete humana, um homem com nariz de palhaço à frente de cavalos em miniatura é controlado por cordas enquanto discursa sobre sonhos, fantasias e lucidez. Rodeado por uma trupe, que veste roupas de tom fantasmagórico, o personagem descreve a trama que ele e os demais encenarão em instantes.
Logo em seguida, os graves eletrônicos e vocais de "The Hall of Mirrors", do Kraftwerk, surgem dando largada à apresentação. A letra, que descreve um homem apaixonado pela própria imagem distorcida, serve bem como prefácio da peça.
Numa montagem circense, "Henrique IV", do italiano Luigi Pirandello, toma o palco do Sesc Vila Mariana, em São Paulo —em cartaz até 5 de junho—, sob direção do mineiro Gabriel Villela, que traz um jogo cênico repleto de dicotomias filosóficas.
O espetáculo se debruça em sátiras, num estilo melodramático e brincalhão, o que, segundo Villela, é um acréscimo ao que o próprio Pirandello já propõe no texto. "A peça por si só já tem uma linguagem não convencional, que bagunça dois espaços distintos", diz ele, em referência à encenação, que mescla os formatos do palco italiano e da arena grega.
Narrada pela fictícia companhia itinerante Francisco Eugydio do Calvári, a história de "Henrique IV" gira em torno de um jovem nobre que enlouquece a caminho de uma festa carnavalesca. Ao cair do cavalo, num acidente cercado de mistérios e suposições, o personagem bate a cabeça e perde de vez a sanidade —que já não andava boa desde que ele descobriu o romance entre seu melhor amigo, Belcredi, e sua própria mulher, Matilde.
Louco, o personagem —vivido por Chico Carvalho— passa, então, a acreditar fielmente que é Henrique 4º, do Sacro Império Romano-Germânico, o que gera uma enxurrada de piadas e confusão entre os verdadeiros membros da corte.
A loucura, porém, não é eterna, e tempos depois, ele cai em si. Mas continua a sustentar a carapuça de maluco, jurando de pés juntos ser o imperador e enganando a todos ao seu redor.
Na montagem de Villela, os atores não são os únicos a contar a história, e sucessos musicais —cantados em inglês e italiano—, compõem a trilha dramática, com letras que muito têm a ver com o roteiro. É o caso de "Bohemian Rhapsody", do Queen, "Bang Bang (My Baby Shot Me Down)", de Nancy Sinatra, "Canzone Arrabbiata", de Nino Rota, e "Lascia ch'Io Pianga", de Georg F. Händel. "Quis usar o rock na peça como uma estrutura transgressora da melodia", afirma Villela.
O diretor comenta também sua experiência com o circo-teatro —tão marcante em "Henrique IV"—, sobre o qual já havia se debruçado anteriormente, como em "Os Gigantes da Montanha" —peça também de Pirandello—, em 2013. "A verdade é que o circo-teatro teve uma função importantíssima na história do teatro brasileiro e levou espetáculos clássicos de cidades como o Rio de Janeiro para outros cantos do Brasil."
Em "Henrique IV", os elementos circenses surgem de maneira irônica, com cores opacas e cenas que flertam com o mórbido e o cômico, assim como as tantas outras dualidades que competem entre si na história, sendo a loucura e esperteza a principal delas.
"Essa peça é um alerta. Ela fala do nosso tempo. É sobre o perigo que de se deixar cooptar por um maluco que tem domínio de uma retórica agradável, ou assustadora, que chama a atenção de todos e cria um rebanho para si", diz o ator Chico Carvalho. "É como se Pirandello tivesse visto o governo brasileiro atual para escrever a peça."
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