Para Hong Sang-soo a vida é, à maneira de Vinicius de Moraes, arte de encontros. A isso ele acrescenta uma arte de desencontros, talvez de encontros desencontrados, como vemos em "A Mulher que Fugiu", do ano passado, e "Encontros", deste ano.
Digamos que, em ambos, as ideias permanecem, mas se radicalizam. O primeiro desenvolve uma vasta digressão em torno de Gam-hee, papel de Kim Min-hee, que faz algumas visitas a amigas durante a ausência do marido.
É a primeira vez que se separam, garante, pois o marido entende que pessoas apaixonadas devem estar sempre juntas, mas desta vez a viagem é rápida. A conversa não gira em torno de temas pessoais, mas de arquitetura, paisagem, cozinha. A discussão da amiga com um vizinho em torno dos gatos que alimentam parece parte substancial da história.
Nada disso impede a amiga de perguntar se ela ama o marido. Ela responderá que sim, um pouco a cada dia.
Uma coisa chama atenção de modo especial durante a deriva da moça —a maneira como Gam-hee deixa os lugares que visita, sempre só e vista de costas.
É como a veremos. Talvez seja a imagem de que lembraremos daqui a muito tempo, a da moça caminhando no clima invernal, de costas, um quê incerto no passo.
O resto será, em boa medida, arte do acaso. Por que Gam-hee vai ao cinema em determinado dia? Por que a esse cinema? É impossível determinar, e é melhor que seja assim. Mas são momentos como esse que nos permitem descobrir um outro fator implicado em tudo isso, o de que as pessoas mentem. Não necessariamente por interesse, já que nem sempre têm consciência do que fazem.
Os vazios inquietantes produzidos pelo filme aos poucos nos levam a perceber que a mentira, ou seja, às vezes esse pequeno descompasso entre o que acontece e aquilo em que Gam-hee acredita, é o que mais determina as coincidências estranhas que se produzem.
Aos poucos notamos, aliás, que esse descompasso entre aquilo em que acreditamos e o que de fato é existe na vida de todos. Que a mentira é uma espécie de segunda natureza do homem, assim como os encontros inesperados.
"Encontros" é justamente o título brasileiro do segundo filme do diretor coreano na Mostra de São Paulo e parece bem mais enigmático, como se Hong talvez estivesse buscando novos caminhos.
A deriva aqui é mais longa e misteriosa. Ela decide estudar moda em Berlim, mas nem bem chegou e já é surpreendida pela presença do namorado, que viajou de Seul só para a ver. Nem é o primeiro encontro do filme, mas é preciso admitir que o gesto do rapaz é radical.
Mais tarde o encontraremos na praia junto a um hotel à margem do rio, como diz o nome do filme que Hong fez em 2018. Não é o único sinal de continuidade. Mas o que significa isso para o diretor e para o filme? Novamente, estamos mergulhados em gestos e encontros cotidianos que pouco significam ou parecem significar.
O jovem namorado vai ao encontro de seu pai, um médico acupunturista, mas o encontro é frustrado, seja pelas obrigações profissionais do pai, seja por fatos que o atravessam e não sabemos bem quais são.
Logo na abertura, por exemplo, o médico parece fazer uma oração em que promete um monte a Deus desde que tenha outra chance. Mas chance do quê? Não sabemos.
O encontro dos jovens namorados se fecha com um fade-out prolongado. É bom que seja prolongado, pois na cena seguinte muito tempo se passou. Agora, vemos a mãe do menino numa refeição com o mesmo homem que visitou o pai na primeira sequência do filme.
Agora, descobrimos que ele é um famoso ator. Que, naquele dia, o jovem disse que, por ser muito bonito, deveria se tornar ator. Também é possível perceber que existe uma relação com a mãe do rapaz, que pode ser de amizade ou amorosa.
Em outras palavras, tudo que é importante em "Encontros" é o que está fora de campo. Extracampo, no jargão. O título em inglês seria algo como "apresentações", que pode ser mais exato, mas não faz sentido em português.
Entre outras, o que tem sido a vida do jovem desde seu encontro com a namorada em Berlim. Agora, ele vai ao encontro da mãe e abandona a carreira de ator, pois se sentiu desconfortável por ter que beijar em cena outra moça que não sua namorada.
Todos acham isso um tanto absurdo. Ele sai e vai até a praia. Lá, acontece um estranho reencontro com a namorada, que não via há muito tempo. Mas tudo leva a crer que é apenas um sonho ou imaginação.
Da cena inicial do pai ao encontro na praia, tudo afirma a incerteza dos destinos, sobre os quais nada saberemos, pois nem os personagens sabem, já que parecem não saber exatamente quem são.
A beleza de "Encontros" não deixa de ser um tanto incômoda, como quando somos apresentados a alguém e não sabemos o que pode acontecer depois, pois não conhecemos essa pessoa.
Se em "A Mulher que Fugiu" a deriva da personagem nos leva a adivinhar quem é, em "Encontros" o diretor deixa o essencial da alma de seus personagens em extracampo. Ele os mostra para melhor os ocultar. Parece seguir por um outro, oblíquo e um tanto desconcertante caminho, mas não desinteressante.
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