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Distopia sombria de novo livro de Ana Paula Maia não assusta muito

Segunda parte de trilogia iniciada com 'Enterre Seus Mortos', 'De Cada Quinhentos Uma Alma' está longe de ser bem resolvida

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De Cada Quinhentos Uma Alma

  • Preço R$ 44,90 (112 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autoria Ana Paula Maia
  • Editora Companhia das Letras

Quando ia começar a ler o recém-saído “De Cada Quinhentos Uma Alma”, de Ana Paula Maia, soube pela orelha que o livro era o “segundo romance da trilogia que teve início com ‘Enterre seus Mortos’”, de 2018. Fui então em busca do primeiro volume desse tipo de série, ou franquia, como se referem a ela atualmente, sem vergonha de dizer seu nome comercial.

Logo comprovei que, de fato, nos dois volumes, preside o mesmo trio simpaticamente sinistro de anti-heróis. Bronco Gil é um homem grande, com um olho de vidro, que sempre segue na direção oeste e que, nas horas vagas, faz servicinhos rápidos de matador de aluguel. Tomás é um ex-padre excomungado que não renuncia a dar caridosas extrema-unções aos moribundos que encontra pelas estradas.

Por último, há o protagonista Edgar Wilson, homem soturno, mais dado a agir que a falar, que trabalha retirando animais mortos das estradas, mas que acaba encontrando nelas também, para seu pesar, corpos humanos à mercê dos abutres.

Por que as pessoas ou animais morrem aos punhados e aparecem nas estradas não é a questão principal. Tudo parece ficar por conta de um iminente e óbvio fim de mundo, no qual a natureza já se encontra presa do caos. De seus abismos emergem vozes misteriosas que arrastam animais e pessoas para a morte.

Capa do livro 'De Cada 500 uma Alma', de Ana Paula Maia
Capa do livro 'De Cada 500 uma Alma', de Ana Paula Maia - Reprodução

No entanto, o que mais incomoda Edgar Wilson, e que se torna o gatilho das aventuras e perigos que corre o trio de anti-heróis, é justamente esse abandono ao léu de pessoas mortas, que ofende a sua ética compassiva do enterro e do respeito ao corpo humano.

No segundo livro, já de 2021, há uma alteração significativa desse plot mínimo. Aliás, duas alterações. De um lado, à desordem climática e ambiental se junta uma pandemia, que obriga ao isolamento e que mata aos milhares. De outro, entra em cena um exército que, sob as ordens de um capitão genocida, agindo aparentemente para isolar os contaminados, trata na verdade de os conduzir a “campos de morte”, onde são todos exterminados.

Ou seja, o cenário de faroeste pré-apocalíptico do primeiro livro vai aos poucos se tornando uma narrativa alegórico-conspiratória em que ao desastre ambiental é acrescida a demência pós-nazista. A narrativa não se torna menos escapista por isso —digamos, apenas, que ela ganha “cor local” em seu vago inventário de horrores.

Essas alterações trazem alguma oscilação na lógica do protagonista. Conforme os cadáveres esparsos do primeiro volume vão se tornando montanhas de milhares no segundo, a ética do enterro dos corpos perde sentido pela simples multiplicação quantitativa, a menos que a escolha da autora fosse deixar morrer Edgar Wilson de pura exaustão. A opção dela foi outra. Agora, a questão é resolver o mistério e dar cabo de quem está por trás do genocídio perpetrado pelo exército. Mas sobre isso possivelmente só saberemos no terceiro volume.

A escritora Ana Paula Maia
A escritora Ana Paula Maia - Marcelo Correa/Divulgação

De minha parte, gosto de ler literatura de gênero, seja de terror, mistério, faroeste ou ficção científica, o que sempre foi tratado como subliteratura no Brasil. Mas a trilogia de Ana Paula Maia ainda está longe de ser bem resolvida. Os aspectos místicos e esotéricos se resumem a citações exaustivamente repetidas, de versículos bíblicos.

A autora também não se esforça para dar à história qualquer tom de religiosidade original, preferindo enveredar pelo vago evangelismo do “arrebatamento” na linha de seriados do tipo "Leftovers". E, de fato, o esquematismo da narração deixa ver que esses livros talvez funcionassem melhor como roteiros de filmes ou séries, nos quais a visualidade e a trilha sonora preenchem o lugar de frases, diálogos ou ideias.

Tampouco os aspectos alegóricos insinuados em “De Cada 500 uma Alma” têm aprofundamento cultural ou político, da mesma forma que a atmosfera sombria não chega a ser inquietante ou a assustar. Enfim, em termos literários, creio que onde a novela se sai melhor é no ritmo lento dos gestos pesarosos de Edgar Wilson. O timing mecânico e esvaziado em que eles se perdem permite vislumbrar algo da real anomia do contemporâneo.

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