Terceiro livro da poeta Ana Guadalupe, “Preocupações” escrutina aquilo que se disfarça ou escamoteia. A graça está no tom, uma resignação quase sempre bem-humorada.
O desconforto segue de perto as preocupações do título —e inclui não só o desconforto que é descrito ou analisado nos poemas, mas sobretudo aquele que a escrita de Guadalupe é capaz de provocar em quem lê.
Há um bom exemplo do modo como a sensação é encarada. Em “amor desconforto”, um casal busca a intimidade que surge com o convívio. Primeiro, “desconfortáveis/ os novos namorados/ querem conforto”. Depois, “no conforto/ os velhos namorados/ ficam desconfortáveis”.
Trata-se da repetição que resulta não só em monotonia, mas também em um certo acúmulo de resíduos, em todos os sentidos da palavra.
Em “allan kardec”, um espírito entediado observa, do sofá onde está estatelado, a rotina maçante das pessoas da casa —evidenciada pelos farelos de pão que se acumulam no teclado do computador. Em “os olhos”, um casal vê a poeira “que se espalha implacável/ pelos cantos do quarto”.
Ainda que as imagens evoquem a mesmice e a paralisia, o transitório e precário não estão ausentes. As várias mudanças de casa, abordadas em mais de um poema, revelam que a familiaridade pode estar não num lugar, mas no movimento constante.
Além de provisória, não raro a casa é decrépita. As “paredes se despedaçam/ alguém se despede rápido/ janelas despencam na brisa”.
A casa está prestes a ruir, e, na despedida rápida inserida entre dois versos, intuímos que mais alguma coisa vai desmoronar. É quando a poeta fala dos vínculos (ou da falta deles) que o humor mordaz se torna mais pronunciado. Em “as pessoas que não nos salvariam do desastre”, identificamos aquelas que “demorariam dez segundos a mais para afastar o fio elétrico”.
A debilidade das relações afetivas também é igualada à do corpo. Assim, “quando amamos quem tem mau hálito/ todo amor é generoso e esforçado”. Quando ele termina, “basta passar com energia o fio dental/ para projetar/ no ar// o sangue/ e o rastro de tártaro/ que hoje são o corpo do ser amado”.
“Preocupações” dá conta do amarfanhado, do rachado, do manchado, do rançoso, dos amores que não vingaram ou vingaram e apodreceram, da recorrência. Se há ilusões, elas não duram muito —como a “gaivota que na janela se revela pomba”.
Ana Guadalupe não dá um polimento artificial à banalidade que compõe a maior parte da vida, tampouco seleciona o que há de neutro ou tranquilizador. Em vez disso, escolhe ângulos duvidosos a fim de capturá-los com uma franqueza divertida. A pomba, se não é uma gaivota, pelo menos exibe “um voo impressionante”.
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