Imagine um tambor aberto virado ao contrário; dentro dele, centenas de pequenas bolinhas de chumbo soltas pululam contra a pele ao fundo: é o geofone, o som “das profundezas da terra”.
O compositor francês Olivier Messiaen (1908-92) inventou o instrumento especialmente para a sua obra “Des Canyons aux Étoiles” (Dos cânions às estrelas), que a Osesp apresenta nesta semana.
Messiaen foi aluno e depois professor do Conservatório de Paris. Capturado e preso no campo de Görlitz (Alemanha) durante a Segunda Guerra, lá escreveu o emblemático “Quarteto para o fim dos tempos”, estreado para um público de guardas e prisioneiros por ele e mais três colegas de cativeiro.
Menos dado a polêmicas que seus brilhantes alunos Iannis Xenakis (1922-2001), Pierre Boulez (1925-2016) e Karlheinz Stockhausen (1928-2007), Messiaen foi um importante elo para o desenvolvimento da técnica serial de composição no pós-guerra.
Inventada pelo austríaco Arnold Schoenberg (1874-1951), a técnica de compor com séries de 12 sons (em vez das habituais escalas maiores e menores de sete notas) haveria de ser ampliada para outros parâmetros, estruturando igualmente a duração dos sons, a intensidade (mais forte ou suave) e o grau de conexão entre as notas.
“Modos de valores e intensidades”, escrita por Messiaen para piano em 1949-50, abriu caminho para as experiências mais radicais que seriam efetivadas por seus discípulos.
Ele não foi um vanguardista típico: católico praticante, manteve até o final da vida o cargo de organista da Igreja da Santa Trindade, em Paris. Misticismo e amor pela natureza o levaram a estudar profundamente —e a traduzir musicalmente— o canto dos pássaros de todos os continentes.
Encomendada pela mecenas americana Alice Tully (que lhe pagou o que seria hoje 285 mil euros) para a celebração do bicentenário da independência dos Estados Unidos, “Dos cânions às estrelas” estreou em 1974.
No palco, apenas 13 instrumentos de cordas dialogam com 14 madeiras, oito metais e muita percussão (entre as curiosidades há –além do geofone— uma máquina de imitar vento e uma placa para evocar o som do trovão).
Vale a pena citar os nomes escalados pela Osesp para as virtuosísticas partes solistas: Eduardo Gianesella no glockenspiel (lâminas de metal com som de sinos); Ricardo Righini na xilorimba (uma marimba com extensão maior); Ueli Wiget no piano; e Luiz Garcia na trompa. O maestro será o veterano oboísta, compositor e regente suíço Heinz Holliger.
A obra dura 1h30 e ocupará o concerto inteiro. São 12 movimentos divididos em três partes desiguais (1 a 5; 6 e 7; e 8 a 12).
Messiaen inspirou-se nas paisagens monumentais do estado americano de Utah (como o Bryce Canyon e o Zion Park), que visitou especialmente durante o período de composição, e no canto de pássaros, em geral apresentado pelo piano (os movimentos 4 e 9 são para piano solo, e “Chamado Interestelar”, bem ao centro da obra, é um majestoso solo de trompa).
Os pássaros (cujos nomes constam explicitamente da partitura) fazem a conexão entre as profundezas da terra e as estrelas do céu, evocadas no movimento que abre a seção final, “Os ressuscitados e o canto da estrela Aldebarã”.
Se o genial programa do Coro da Osesp no último domingo —com obras de Hildegard von Bingen, Machaut, Arvo Pärt e Arrigo Barnabé – já havia convertido a Sala São Paulo em uma catedral gótica, a obra de Messiaen institui agora a fina equação capaz de unir misticismo, experimentalismo sonoro e natureza.
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