Houve um tempo em que filmes, livros e peças, ao retratarem o Holocausto, podiam ser absorvidos com horror e náusea calculados: “Ainda bem que não vivo em tempos de fascismo!”.
Infelizmente, hoje, o sensível leitor de “A Mercadoria Mais Preciosa” terá que ficar apenas com o solavanco seco e irremediável desta fábula que remete, ironicamente, ao conto infantil “O Pequeno Polegar”—tendo, porém, o efeito de tirar o sono de adultos, e não de fazer crianças dormirem.
Essa é a história de uma recém-nascida faminta que, ao ser lançada pela janela de um trem, torna-se “mercadoriazinha” e acaba nos braços de um casal de lenhadores.
A pobre e velha lenhadora, ao agarrar aquela “esmola ofertada pelos deuses”, realiza seu maior sonho tornando-se mãe, e o pobre e velho lenhador, graças ao encantamento pelos primeiros passinhos da bebê-mercadoriazinha, pode finalmente parar de repetir as frases persecutórias e macabras que os “caçadores de sem-coração” incutiram em sua mente.
O conto é terrível, sombrio, triste e extremamente belo (sobretudo se pensarmos na transformação de tamanha dor na mais refinada literatura). Mas Jean-Claude Grumberg, premiado escritor, dramaturgo e roteirista de cinema (trabalhou com Truffaut e Costa-Gravas), prefere chamar sua narrativa, bastante autobiográfica, como descobriremos ao final, de “um conto de amor”: “Nos dias que se seguiram[…] já não sentiram o peso dos tempos, nem a miséria nem a tristeza de sua condição. O mundo lhes pareceu leve e seguro apesar da guerra, ou
graças a ela…”.
É lá pelas tantas (que são poucas, pois a obra é tão maravilhosa quanto curta) que nos perguntamos aquilo que deveras aguça os jornalistas e angustia os criadores: e o que, afinal, é real?
O Grumberg diz que “a única verdade verdadeira é que aquela garotinha, que não existia, foi enrolada em um xale de oração, que não existia, e jogada para uma pobre lenhadora sem filhos... que não existia!”. Em outro momento, o escritor também finge duvidar se existiram aqueles trens a deportar milhares de judeus para a morte, os crânios a raspar e os cabelos loiros (os mais procurados!) a vender. Propositalmente, mistura certezas históricas com sonhos e devaneios, dando a única explicação possível para uma escrita genuína: o que importa?
Esse bem poderia ser o enredo dos pais e dos avós do autor, que seguiram nos comboios 45 e 49 para se tornarem “fumaça estrelada”. Mas, ainda segundo Grumberg, a única coisa que merece existir nas histórias, como na vida verdadeira, é “o amor oferecido às crianças, às suas como às dos outros. O amor que faz com que, apesar de tudo o que existe, e de tudo o que não existe, o amor que faz com que a vida continue”.
Leitura rápida e densa, senti a carne do peito sendo refilada em fiapos de ternura. Não fechemos os olhos para a crueldade deste mundo (que ora se recalca, ora retorna com a força de toneladas de lama represada), tampouco para a poesia dos que puderam e ainda podem sobreviver a ela.
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