“Flávio de Carvalho, pai do ‘happening’ no Brasil, ordena: saiote para eles, mini para elas”, anuncia uma reportagem dos anos 1950. Em uma fotografia em preto e branco, Carvalho, beirando os 60 anos, apresenta o seu “New Look (Experiência nº 3)”, que combina um uniforme de soldado romano e meia arrastão.
O figurino é apenas uma amostra da produção multidisciplinar do artista que a Galeria Almeida e Dale apresenta agora.
Com desenhos, pinturas, projetos arquitetônicos, croquis de figurino criados ao longo de cinco décadas, além de ampla documentação, a mostra é uma versão expandida daquela que ocupou a londrina Sotheby's S|2 Gallery em abril, a primeira dedicada ao artista no Reino Unido.
No ano que vem, será a vez de os alemães conhecerem a obra de Carvalho, morto em 1973, na 11ª Bienal de Arte Contemporânea de Berlim.
À frente das versões brasileira e britânica da mostra, Kiki Mazzucchelli descreve o artista como um homem muito à frente de seu tempo, um "conceitual avant la lettre".
A começar pela maneira com que lidava com a mídia. Para apresentar o “New Look”, desfilou pelas ruas do centro paulistano seguido por dezenas de repórteres, subiu em uma mesa no meio dos Diários Associados e, burlando a obrigatoriedade de terno e gravata, deu um jeito de entrar no Cine Marrocos.
Muito antes, em 1927, já chamava a atenção da imprensa ao apresentar um projeto arquitetônico para o Palácio do Governo do Estado de São Paulo sob o pseudônimo de “Efficacia”.
Crítico do pastiche de referências europeias da arquitetura brasileira da época, o desenho parece um fragmento do cenário de “Metrópolis”, de Fritz Lang. Sua fortaleza geométrica futurista, com três holofotes no topo, foi reproduzida em diversos veículos.
Mazzucchelli afirma que a vocação para a polêmica, aliada à multiplicidade de suportes com que trabalhava, não ajudou na recepção crítica de Carvalho. No país, sua obra só começou a ser levada a sério dez anos depois de sua morte, quando seus projetos foram expostos na 17ª Bienal de São Paulo, em 1983.
Lá fora, o reconhecimento começa a chegar agora. Mazzucchelli argumenta que Carvalho é uma figura-chave para entender a passagem do modernismo, movimento ao qual o artista se associou nos anos 1930, para o neoconcretismo de Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape. “Ele faz uma aproximação entre vida e obra que caracteriza essas vanguardas tardias.”
Essa aproximação também pode ser vista nas pinturas e desenhos que enchem as paredes da galeria. São retratos de amigos e interlocutores intelectuais de Carvalho, cujas angústias ele buscou representar com traços expressionistas, cada vez mais influenciado pela psicanálise.
Feições e corpos se dissolvem em segundo plano das telas com explosões de cores. Nos nus, em nanquim, mulheres adquirem contornos ao mesmo tempo grotescos e sensuais, como as personagens dos filmes do italiano Federico Fellini.
Não à toa, Mário de Andrade um dia escreveu que, enquanto o pintor Lasar Segall mostrava “o decente, o que se apresenta ao público”, ao se defrontar com uma pintura sua realizada por Carvalho, ele via “o lado tenebroso da minha pessoa, o lado que eu escondo dos outros".
Também em consonância com os estudos na psicanálise, Carvalho era defensor ferrenho de uma sociedade livre dos tabus e moralismos religiosos.
O tema foi abordado naquela que ficou conhecida como a primeira performance no país, a “Experiência nº 2”, de 1931. Nela, o artista usou um boné no meio de uma procissão de Corpus Christi para pesquisar "a capacidade agressiva das massas religiosas". Recebeu uma amostra empírica ao ser obrigado a fugir da multidão, irada com o desrespeito à santa.
A questão voltou a aparecer dois anos depois, na peça “O Bailado do Deus Morto”. Misto de performance e espetáculo musical que juntava no palco brancos e negros, o texto narra a extinção do todo-poderoso depois que ele faz sexo com uma mulher. Ao final, suas partes íntimas viram bugigangas.
Numa de suas primeira sessões, cerca de 150 policiais cercaram o recém-inaugurado Teatro da Experiência para proibir a montagem, considerada subversiva.
O espetáculo inspirou uma performance do Teatro Oficina na Bienal de São Paulo de 2010. Neste sábado (17), às 10h, o grupo retorna ao texto original para uma apresentação de cerca de 20 minutos. Seis atores e três músicos vestem réplicas das máscaras de alumínio tribais idealizadas por Carvalho, também expostas na mostra, para dar vida à alegoria.
Diretor desta versão, Marcelo Drummond conta que o grupo tem vontade de levá-la aos palcos, apesar de ela ser bem mais curta que a maior parte das obras do Oficina. “Nem sei montar uma peça de 30 minutos.”
Ele adianta que a cena de sexo entre Deus e a mulher não é explícita. “Pelo menos por enquanto. Não quero ninguém filmando e colocando nas redes uma criança tocando no ator pelado", ri.
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