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Artes Cênicas

Em 'Mississipi', Os Satyros tentam refletir sobre a miséria na Roosevelt

Ingenuidade do argumento enfraquece a observação concreta da realidade

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Mississipi

Nesses quase 20 anos instalados na praça Franklin Roosevelt no centro de São Paulo, Os Satyros conseguiram mais do que dinamizar a vida num local antes sombrio e abandonado. Com o tempo, o seu trabalho teatral foi sendo esteticamente marcado pelas dinâmicas daquele espaço da cidade.

Em “Mississipi” mais ainda. A iluminação colorida e cheia de movimentos, as referências kitsch aos karaokês da região, figurinos e adereços de inspiração andrógina fazem brilhar a imagem de uma Roosevelt paradoxal, cheia de vida noturna e miséria degradante.

O espetáculo parece nascer de um atento interesse pelo outro, isto é, por aquele entorno miserável que contrasta com a vida cultural e com a boemia da praça. Com atuações sensíveis, o elenco, de modo geral, recusa qualquer estereótipo redutor no esforço em dar vida complexa para as pessoas que habitam as ruas, a noite e os prédios da região.

Contudo, o interesse pelo outro é um instantâneo logo dissolvido por uma espécie de tese que percorre a dramaturgia da peça. Com o decorrer das cenas vai ficando claro que não é bem a miséria social o centro do problema, mas sim a solidão, a depressão, os traumas da vida privada das personagens.

De forma sutil, o espetáculo vai assinalando os pontos de conexão entre os moradores de rua e os de classe média alta que vivem nos prédios da Roosevelt. Onde parecia existir um abismo instransponível, vamos vendo similaridades emocionais. Como se a cena dissesse: na rua ou no luxo o abandono dói igual, somos todos humanos.

Até o síndico conservador e higienista, figura deplorável no mosaico apresentado em “Mississipi”, sofre também a solidão da raiva cega. Ele chama-se Alone (sozinho, em inglês) e está preso no ciclo de desamor que paira sobre a sociedade.

A ingenuidade do argumento toma conta do espetáculo e enfraquece a observação concreta da realidade. O texto escrito por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez vai se tornando uma coleção de lamentos pessoais, todos meio parecidos, sempre querendo dizer a mesma coisa.

E o coro que no início aparece como uma vibrante voz coletiva de desajustados acaba por coroar esta frágil tese. Torna-se, afinal, o momento em que todas as personagens (miseráveis famintos e burgueses deprimidos) se juntam para cantar abraçados, em um grande karaokê, as suas dores humanas. Até a plateia bem alimentada do Teatro Anchieta é convocada para esta celebração que apaga os conflitos sociais em nome de uma festiva unidade do sofrimento íntimo.

A sensação é que os Satyros olham a miséria no olho, mas só o que eles enxergam é o seu próprio reflexo.

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