Quando recebeu o convite para fazer uma residência artística na Universidade de Coimbra, Adriana Calcanhotto, 53, sentiu como se ganhasse um presente.
Era 2015 e fazia poucos meses que ela havia perdido sua companheira, a atriz Susana de Moraes, morta aos 74 anos, após um câncer no útero.
Aceitou o desafio, embora parecesse inusitado: “Pensei que haviam pedido o email do Chico Buarque e deram o meu por engano”, diverte-se.
Foram dois anos e meio em Portugal. Lá, deu aulas de composição, apresentou seminários e estudou, em especial arqueologia e as histórias de Grécia e Roma antigas.
Lambeu feridas e afiou o olhar sobre o Brasil, em conexão com longa tradição: como ela, muitos pensaram o país a partir de Coimbra, como o poeta Gonçalves Dias, o inconfidente Claudio Manoel da Costa e o político José Bonifácio.
“As pessoas me perguntavam se eu já estava europeia; pelo contrário! Nunca me senti tão brasileira”, diz a cantora.
Do distanciamento vieram reflexões sobre a exploração das riquezas nacionais pós-descobrimento, a exploração de índios e negros, o modernismo e a tradição de consumir poesia em canções.
São todos ingredientes de “A Mulher do Pau Brasil”, show que Adriana volta a apresentar em São Paulo nesta sexta (30).
Show, não —"concerto-tese", espécie de trabalho de conclusão da residência na universidade portuguesa.
No espetáculo, Adriana retoma o título de um dos primeiros shows da carreira, no fim dos anos 1980.
O repertório pinça músicas daquela versão oitentista, como “Geleia Geral” e “Eu Sou Terrível”. A elas são acrescidas novidades, como a canção “A Mulher do Pau Brasil” e uma versão de “O Cu do Mundo”, de Caetano Veloso, que ganha videoclipe nesta sexta (30).
Acompanhada de Bem Gil e de Bruno Di Lullo, Adriana relê também “As Caravanas”, do mais recente disco de Chico, e temas antigos seus, como “Esquadros” e “Inverno”.
No visual, predomina o vermelho da tinta do pau-brasil —referência às reflexões sobre identidade nacional e também resposta ao mote de setores conservadores, segundo os quais “a bandeira do Brasil jamais será vermelha”.
“Pode até ser, mas isso não apaga de nossa história o vermelho da extração do pau-brasil e do sangue derramado de escravos negros e índios.”
A volta ao Brasil coincidiu com a mais polarizada campanha eleitoral da história recente; um “momento duro”, como define. “Você não poder terminar uma frase sem ser atacado, é chato. Mas quero crer que as coisas vão ficar mais elevadas; sou otimista.”
O show estreou em Coimbra antes de visitar cidades como Fortaleza, Recife e Teresina, no Piauí, onde passou pelas pequenas Floriano e Piripiri.
A turnê segue até fevereiro. Depois, Adriana volta a Coimbra —aceitou convite para mais um semestre na universidade, lecionando e “cheirando pedrinhas”, como se refere aos estudos de arqueologia.
A passagem do tempo inspira uma efemeridade que, diz a cantora, faz com que ela não projete registro do trabalho em DVD. “As coisas que acontecem nesse show são do mundo da catarse: pertencem àquela noite, àquele teatro.”
À pergunta sobre se sua MPB estaria mais para uma “música poética brasileira”, a cantora responde que não. No Brasil, diz, é pela canção popular que se consome poesia.
“Lembro de ligar o rádio, novinha, e ouvir o Vinicius [de Moraes] cantar; pensei que daria minha vida para fazer alguém sentir com uma canção minha o que senti com a dele.”
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