Os Cravo, juntos, formaram o maior clã da arte na Bahia e um dos mais marcantes na história da arte brasileira. Numa inversão da ordem natural dos fatores, o filho se foi antes do pai, embora as obras dos dois às vezes se toquem.
É impossível caminhar por Salvador sem avistar as formas monumentais imaginadas e construídas por Mário Cravo Júnior, que morreu nesta quarta (1º/8). Das estranhas gotas ou dentes brancos empilhados da fonte do Mercado Modelo à cruz tombada como um abre-alas do Pelourinho e da baía de Todos-os-Santos.
Nas fotografias de seu filho, Mário Cravo Neto, os corpos quase sempre negros também viravam belas estátuas, a pele feito pedra reluzente em contrastes calculados. Seus retratados viravam monólitos sem arestas, tais quais as formas arredondadas, de um geometrismo mais dócil, de seu pai.
No fundo, o filho fotógrafo sempre sempre esteve em sintonia com o homem que nos deixa agora, artista que arquitetou sua obra na encruzilhada entre o mundo dos vivos e o dos mortos. A carne que vira pedra no estúdio fotográfico está à sombra dos gestos no ateliê do pai, que usava restos de madeira e metal, de engrenagens a bicicletas entortadas em acidentes, para fazer estátuas abstratas e figurativas.
Sua série de esculturas de Cristo feitas com os escombros do antigo Mercado Modelo, que pegou fogo e veio abaixo na década de 1950 e depois foi restaurado, é talvez a mais poderosa síntese de sua crença no poder da morte como renascimento, ou na destruição criativa que marca a passagem do modernismo ao pós-modernismo que ele reflete em quase toda a sua obra.
Mário Cravo Júnior, um estudioso de Aleijadinho que também viu de perto as vanguardas de todo o século 20, desafiou a rigidez do modernismo e suas formas industriais, deixando que as dimensões do sagrado e do profano entrassem em atrito numa obra plural e imprevisível.
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