'A artista � mulher e negra, mas arte � arte', diz S�nia Gomes
O ano em que completa 70 anos ser� corrido: Bienal do Mercosul em abril, retrospectiva no MAC de Niter�i em junho e exposi��o individual no Masp em novembro.
Para S�nia Gomes, por�m, n�o � tempo que falta. "A cabe�a da gente vai muito al�m da capacidade Duas m�os? Precisava de mais, muito mais m�os", brinca em seu apartamento-ateli�, em Pinheiros (zona oeste de SP), para onde se mudou neste ano.
Na sala, cinco metros de seda pura cor de chantili se abrem para todos os lados, presos ao teto por uma roldana. O vestido de noiva guardado por 60 anos e doado � artista est� sendo "desconstru�do" para ser exposto em Porto Alegre, em abril.
Outras esculturas menores v�o sendo terminadas nas paredes, em gaiolas ou na m�quina de costura. "N�o trabalho sob press�o", diz S�nia, que exp�s pela primeira vez aos 46 anos. "Sempre gostei de arte, mas precisava cuidar da sobreviv�ncia antes."
�rf� aos quatro anos da m�e, negra, foi criada pela fam�lia do pai, branco -de quem herdou um forte halo azul ao redor da �ris castanha.
Em falta na inf�ncia, o afeto est� na base da arte de S�nia, que j� foi comparada � francesa Louise Bourgeois. Com vendas no exterior que no Brasil, ela diz que ainda h� muito racismo no pa�s.
"Fiquei superfamosa este ano na minha cidade natal, mas por causa do U2", diz, rindo. Com tr�s obras compradas pelo baixista da banca irlandesa, Andy Clayton, ela foi convidada especial no show em outubro, no Morumbi.
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Folha - � comum que as pessoas lhe mandem seus objetos, como este vestido de noiva?
S�nia Gomes - Algumas v�o �s exposi��es e veem o trabalho e o material que uso, e aparecem no meu ateli� caixas de coisas. S�o objetos do afeto das pessoas, que elas n�o querem descartar. Ficam guardadas na gaveta por anos. Ent�o me encontraram.
Sabe algo da hist�ria desse casamento?
N�o. Tamb�m tive essa curiosidade quando esse vestido chegou. O que ser� que aconteceu com esses amantes, ser� que est�o juntos ainda? Ou separados? Algu�m faleceu? A� tive a resposta: o filho dela me mandou uma foto e disse que os pais eram aqueles do fundo. Vi que eles ainda est�o juntos. Porque a gente fica mesmo com essa curiosidade.
Usa seus pr�prios tecidos nas suas obras?
Comecei assim, desconstruindo roupas. Sempre tive essa inquietude, n�o queria ir � loja, pegar uma roupa prontinha e usar. Procurava dar um toque meu. O neg�cio foi ficando t�o maior que n�o dava para vestir. Tinha virado outra coisa.
At� que algu�m lhe disse que aquilo era arte?
Eu n�o sabia bem o que estava fazendo. Sou do interior de Minas e sempre fiz coisas para mim, bijuterias, coisas que s� eu que tinha coragem de usar. Um dia levei bolsas a uma loja de artesanato e n�o quiseram. Na loja comum, senti preconceito, como se dissessem "isso � coisa de negro". Nunca tive a pretens�o de ser uma artista. Queria viver, sobreviver do que eu fazia, e n�o sabia o que era. Nem por isso deixei de extrapolar nas coisas. Continuava a fazer aquilo de que gostava e n�o o que o mercado sugeria que eu fizesse.
Quando o que fazia foi reconhecido como arte, sentiu-se mais livre?
Achei �timo. Senti que a arte me buscou, me resgatou daquele lugar. Se n�o chegasse nesse patamar da arte, era o que eu gostava de fazer. Gosto da coisa manual. Quando estou fazendo, �s vezes entro num estado de medita��o. Precisava disso para viver. N�o tenho religi�o. Uma vez me falaram no sagrado, fiquei at� brava. Mas hoje fa�o isso como uma religi�o mesmo.
Qual � o aspecto religioso?
� um estado de transe, de medita��o, de n�o pensar em nada, de comunica��o com o cosmo. �s vezes termino um trabalho, olho para ele e choro. E penso "gente, quem fez isso?". Algo que est� al�m. O processo � pensado, mas muito intuitivo, tamb�m. Sigo mais a intui��o, e o material escolhe o que vai ser. Nunca sei o que vai ser.
E o que o material do vestido escolheu ser?
A primeira coisa de que senti necessidade quando o vestido chegou foi abri-lo. Eu n�o sabia bem o que procurava, sou aquela artista que primeiro faz e depois pensa. Se pensar antes, limita. O que quero dele � algo bem fluido, bem livre. � um trabalho com desenho, o volume da escultura e a cor da pintura. Transita nessas linguagens. Quero que o vestido fique no espa�o e que a pessoa transite nele. N�o vai ter costas nem frente, n�o vai ter direito nem avesso. A arte � essa liberdade, ela � livre. Algo que transcende. N�o � preciso estudar arte, as pessoas mais simples s�o tocadas por ela e respeitam.
Neste ano foquei a galeria, e estava de mudan�a. Quando a Bienal do Mercosul me contatou, pensei em fazer uma pe�a com este vestido. Se n�o fosse o convite, ele ainda estaria guardado.
Esperando inspira��o?
N�o, esperando espa�o. Quando come�o a trabalhar, nunca fecho uma obra, vou fazendo v�rios, e este trabalho tem que ficar assim, aberto. De repente acordo e antes de tomar caf� tenho que trabalhar nele. Digo que a casa � um ateli� no qual eu tenho um quarto.
Mudou-se para S�o Paulo de vez?
Uai, S�o Paulo estava me chamando h� muito tempo, e resolvi atender ao chamado. E acho que agora ela me abra�ou. Gosto de cidade grande.
E necessito de vida, por isso vim para S�o Paulo. E precisava ser um lugar, com cachorro na rua, gente, com�rcio popular, tudo.
Tem at� uma feira na minha rua, e eles consertam panela, gente! A panela est� boa de jogar fora, mas eles colocam cabo, desamassam. Isso � maravilhoso! Porque a pessoa pode achar que essa comida s� essa panela que faz. E ent�o ela recupera a panela.
Sua arte tamb�m faz isso, pega o que foi usado e d� um significado novo.
Sim. E quando vejo aquele monte de panela, sinto que � o contr�rio da cultura dos Estados Unidos, em que tudo eles jogam fora. N�o t�m hist�ria, n�o. Tudo troca por um novo.
Vai ter obras suficientes para tantas exposi��es em 2018?
No MAC de Niter�i, ser� uma restrospectiva. O curador, Pablo [Leon de La Barra, tamb�m curador de arte latino-americana do museu Guggenheim (MY)], deve coletar os trabalhos dos colecionadores e museus. No Brasil tem pouco trabalho meu, ent�o n�o sei como vai ser.
Por que h� mais obras suas no exterior?
As vendas s�o muito maiores l� fora. Por exemplo, fui convidada para a Bienal de Veneza, mas nunca pela Bienal de S�o Paulo. O Brasil � um pa�s muito racista. H� poucos negros em galerias, embora haja artistas maravilhosos. O espa�o n�o � o mesmo.
Sente esse racismo mesmo depois de ter exposto na Bienal de Veneza?
Sim. Na galeria em que estou, por exemplo, h� s� dois negros, eu e Paulo Nazareth. Levando em considera��o que este � um pa�s negro, deveria ser pelo menos mais equilibrado. Mas est� havendo um movimento.
No cotidiano, sente tamb�m preconceito?
Em S�o Paulo n�o senti. N�o sei se � porque o meu meio � mais de artistas, colecionadores. E S�o Paulo � uma cidade mais cosmopolita. Mas o meu sentido � o ver. Se vou a uma exposi��o, olho o p�blico: negro s� eu, �s vezes. Sinto o preconceito a�. Se voc� vai a um restaurante e olha, os servi�ais s�o negros e nas mesas s� brancos. N�o sou militante, nunca fui. Minha milit�ncia � mais silenciosa. Eu tinha necessidades mais urgentes, tinha que dar conta de mim para depois dar conta do outro. Acho que minha dor eu transformei em beleza e entrego para o mundo.
Acha que a quest�o racial est� na sua arte?
Tem muito, apesar de nunca ter tido essa preocupa��o com r�tulos: arte negra, arte popular, arte contempor�nea. Mas essa quest�o est� muito presente no trabalho: o fazer manual, as cores, as amarra��es. Descobri isso depois. Onde eu busquei isso?
Onde?
Na vida. E talvez no sangue, na ancestralidade. Porque fui criada numa fam�lia branca, dentro de uma religi�o cat�lica. Mas essa leitura est� no trabalho. A artista � mulher e � negra, est� expl�cito isso, e nunca quis sufocar isso.
Ent�o essa identidade negra n�o tem uma refer�ncia familiar?
Minha m�e era negra, e fui criada com minha av� at� os quatro anos, quando minha m�e faleceu. Minha av�, que era muito pobre, me levou para a casa do meu pai, que n�o era casado com minha m�e. Eles tinham condi��es de me manter, tinham posses. Sa� de um casebre e fui para uma casa enorme. Mas mesmo assim eu queria voltar. Porque nessa casa n�o tive afeto. E na casa da minha av� eu tinha. � esse afeto que eu busco.
Muitos dos seus trabalhos falam sobre mem�ria e sobre o tempo. Qual o peso que o tempo e a idade t�m para a sra.?
Gosto de coisas que tiveram vida. Acho bonita a p�tina do tempo, o que ele deixa no material. Esteticamente, acho bonito. O tempo cronol�gico, cada um tem o seu. Muitos artistas nov�ssimos j� t�m seu trabalho super-reconhecido, e o meu s� agora. O tempo dele � esse. O meu � agora.
Hoje, numa �poca de aceita��o e desconstru��o de um monte de valores, a idade tem que entrar nisso. A pessoa que viveu mais n�o � para ser descart�vel. Enquanto h� vida, h� oportunidades, e temos que agarrar essas oportunidades. E a gente aprende o tempo todo. Aprendo com meu assistente, que � jovem. � uma troca. Acho pequeno dizerem que estou velha para isso, isso nunca me barrou.
Por que � o tecido o seu material de trabalho?
O tecido � muito pl�stico, sabe? Amo tecido. Nunca fui costureira, mas o tecido sempre me chamou. Gosto da hist�ria do tecido, da trama, do tear, e por acaso a cidade em que nasci, Caetan�polis, foi um ber�o t�xtil. Convivi muito com a chita fabricada l�, achava lindo aquele estampado.
Mas acho que � bem pela ra�a. Quando adolescente gostava de fazer amarra��es. Nunca quis ter filho, mas queria um s� pra carregar como uma africana, amarrado nas costas ou na frente. Acho lindo aquilo. Tenho essa sedu��o pelo tecido.
O tecido � feminino?
Por mais que tentam desconstruir, bordar, isso � do mundo feminino. N�o quer dizer que o homem n�o possa bordar, mas � muito do mundo feminino.
N�o lhe incomoda o fato de o tecido ser mais perec�vel, de sua obra ser mais perec�vel?
Sim, j� pensei sobre isso, mas isso � trabalho para os restauradores. Se n�o s� vai ter escultura de metal, fica limitado. E a arte � livre. Que registrem, tirem foto, mas n�o posso deixar de fazer.
Olha a obra que o Bispo [Arthur Bispo do Ros�rio] deixou. Ele n�o se preocupava com nada. Nem com comercializar. E esta a� a obra dele. Ele fez para ir com ele, n�o fez pensando em ficar nesse mundo. Os restauradores � que v�o ter que ver o que eles fazem [risos].
Faz suas pr�prias roupas?
N�o. Quando era jovem tentei, porque n�o gostava de nada do que estava pronto nas vitrines. Na adolesc�ncia, talvez por rebeldia mesmo, sempre procurei ser diferente. Talvez j� fosse o apelo da arte, de n�o querer nada muito massificado.
Eu n�o fazia minhas roupas, mas desconstru�a. Minha primeira express�o foi atrav�s do vestir, mesmo.
At� hoje gosto de roupa, gosto de pano. Mas nunca tive recursos para ter roupas bacanas, ent�o comprava no brech� e desconstru�a.
At� entrei para uma aula de costura, mas durou um dia. Tinha que usar r�gua, fazer muita conta, e meu neg�cio � mais livre, � chegar na m�quina e bolar.
Outro dia, na minha cidade, um primo falou: 'Sonia, A sra. est� muito normal, de cal�a jeans, camiseta'. Eu respondi: '� que agora est� tudo no meu trabalho' [risos].
Antes desviava para a roupa.
Sim. Um professor dizia que eu era uma instala��o ambulante, de tanto colar, pano na cabe�a.
A sra. se formou em direito, n�o �?
Sim, por quest�o de sobreviv�ncia. Sempre me interessei por arte, seja qual for, mas nunca me vi artista, porque nunca soube desenhar. Escola de arte era caro, eu n�o tinha condi��es. Por isso a arte veio mais tarde. Primeiro tive que buscar condi��es, para depois jogar tudo para o alto e fazer aquilo de que gosto, aquilo em que acredito.
A vida da gente � uma coisa s�, temos que trabalhar com o que gostamos para ser bom, seja o que for. O resto � consequ�ncia.
Na Bienal de Veneza ou na galeria em S�o Paulo, como percebe as pessoas vendo sua obra?
�s vezes sinto essa resposta do afeto. Porque eles me entregam depois coisas para eu construir a minha po�tica. Sinto que gostam, eles v�m, me abra�am, me olham. N�o precisa falar muito, � o sentir, mesmo.
Trabalha todos os dias?
Sim, � uma necessidade, e gosto de viajar trabalhando tamb�m. Nas viagens eu pesquiso, observo. O trabalho � brasileiro como eu. � o casebre com suas coisas bonitas, o erudito e o popular juntos.
A sra. n�o gosta dessa classifica��o arte popular ou erudita.
� dif�cil. Como diz o [curador do Masp] Adriano Pedrosa, arte � arte.
Gosto muito da "Po�tica do Espa�o" [livro de Gaston Bachelard]; fala coisas em que me vejo, sobre o tempo, o lugar, o aconchego.
L� o que escrevem sobre seu trabalho?
Leio. N�o gosto de me ver, mas gosto de ler o que escrevem sobre o trabalho.
Alguma cr�tica de obra sua lhe vez v�-la de forma diferente?
Sempre traz algo novo, uma interpreta��o nova. Porque a obra guarda segredos demais. Isso de algu�m ver coisas que nem eu mesma via Eu penso 'n�o � que tem isso mesmo?'.
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