S�rie para TV vasculha a est�tica contempor�nea do sert�o
Desconsiderado um tipo de precipita��o que dura segundos, faz seis anos que n�o chove nas cidades de Cabaceiras, Gurj�o e S�o Jo�o do Cariri, conta o povo desta regi�o do semi�rido paraibano. A garganta de todo mundo reclama da poeira e do ar seco. Das estradas, observam-se planta��es sem folhas nem frutos, e sistemas de irriga��o fora de uso.
N�o s�o caracter�sticas que chegam a surpreender aos brasileiros que v�o ao cinema e assistem � TV. Essas faces geogr�ficas ou humanas j� foram amplamente exploradas l� atr�s por "Vidas Secas" (1963), de Nelson Pereira dos Santos, e depois com a vertigem de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), de Glauber Rocha.
Em 1998, romantizou-se o sert�o em "Central do Brasil", e vieram, neste s�culo, t�tulos como "Cinema, Aspirinas e Urubus", "Romance", "C�u de Suely", entre tantos.
O cen�rio desidratado e de horizontes abertos retorna � TV em produ��o da Globo rodada nas cidades acima citadas e que n�o se ocupa exatamente de falar da pobreza nem da vida simples. Os personagens do n�cleo de "Onde Nascem os Fortes" t�m suas propriedades, cursos universit�rios, praticam mountain bike.
A hist�ria est� sendo criada com roteiro de George Moura e Sergio Goldenberg e dire��o de Jos� Luiz Villamarim, time que j� filmou no interior de Pernambuco "Amores Roubados", que a emissora exibiu em 2014.
No fim do m�s passado, a Folha acompanhou um dia de filmagem e visitou loca��es usadas na s�rie, programada para estrear em abril.
As conversas com o elenco e a equipe de cria��o foram sempre pontuadas por uma preocupa��o: nos discursos, aparece a vontade de expressar como o sert�o, j� t�o calejado pela ind�stria do audiovisual, ressurge, novo. E como ele � naturalmente incorporado nas filmagens, n�o s� pela paisagem. At� a poeira pode mudar a voz de um ator.
Villamarim diz sentir a press�o de uma nega��o do que j� foi feito por ele pr�prio. "Fico negando para tentar reinventar, para ter um novo jeito de filmar, e acho que vai ter um avan�o a�", defende. Se o realismo deu o tom de "Amores Roubados", agora ele procura um sert�o de refer�ncias contempor�neas onde ainda despontem arqu�tipos, como as figuras do juiz e do messias.
Para exemplificar a incorpora��o do contempor�neo, ele fala de aplicativos, funk e motoqueiros. "Em Gurj�o, deste tamaninho, quando a gente voltou da loca��o tava tocando funk, e uns meninos empinavam motos, uma loucura. Eu disse: 'Caraca, tem que botar isso pra dentro da s�rie'", relembra.
A s�rie tem como ponto de partida o desaparecimento de um rapaz (Marco Pigossi), nesse mesmo cen�rio que conjuga o arcaico ao s�culo 21, ap�s ele se envolver com a amante de um sujeito poderoso (Alexandre Nero).
Sua irm� (Alice Wegmann), companheira nos circuitos de mountain bike, se desespera e n�o sossega enquanto n�o descobre o que aconteceu de fato. Ela ser� auxiliada pela m�e (Patricia Pillar), que guarda segredos sobre sua vida pregressa naquelas terras.
Haver� desdobramentos m�ltiplos em cerca de cinquenta cap�tulos, incluindo a partida da protagonista para uma comunidade comandada por um sujeito de fei��es messi�nicas, interpretado por Irandhir Santos.
A passagem � filmada no Lajedo de Pai Mateus, na mesma regi�o da Para�ba, conhecida pelo visual fant�stico de pedras esf�ricas com alturas de at� quatro metros, que se espalham em um terreno rochoso. Ali, a produ��o ergueu uma constru��o que tamb�m tem elementos contempor�neos e arcaicos. Ela � toda feita de gravetos na vida fict�cia. Na realidade, esses gravetos s�o feitos de PVC.
Amarradas umas �s outras, as unidades formam uma esp�cie de oca, de paredes vazadas e p�-direito alto. O sol entra por entre as frestas e forma desenhos no piso. A inspira��o � a obra do arquiteto finland�s Marco Casagrande, conta Villamarim, em entrevista realizada em um quarto de hotel.
Quando a reportagem entra no aposento, ele aponta a distribui��o espacial desequilibrada de tr�s c�modos e faz um tour at� o banheiro, onde h� uma banheira de hidromassagem. "Essa � a su�te presidencial", diz, em tom c�mico. A sugest�o � de que n�o havia a necessidade de luxos.
Villamarim e o diretor e diretor de fotografia Walter Carvalho (eles tamb�m se agruparam na s�rie "Justi�a") ocupam hoje uma posi��o privilegiada na Globo, que � a de frequentar o hor�rio das 23h, faixa de olhares mais ousados. "Nesse hor�rio, quem est� diante da televis�o est� mais concentrado", diz.
"Passa das 22h, um n�mero de pessoas desliga a TV. Passa das 23h, outro n�mero desliga. Quem fica n�o est� jantando nem conversando. Est� desejando ver aquilo. Voc� pode ter uma linguagem mais complicada".
Passa por essa identidade as experimenta��es mais comuns ao teatro. Os atores da s�rie falam, por exemplo, sobre suas experi�ncias locais e como elas interferem diretamente na trama e nas interpreta��es, o que � mais comum ouvir de artistas das artes c�nicas, como os da Mundana Companhia, de onde est� vindo Lee Taylor, que faz um amigo da protagonista.
A produ��o de elenco tem olhar voltado � cena teatral. Al�m de Taylor, est�o presentes integrantes do grupo pernambucano Magiluth e Enrique Diaz, int�rprete e diretor de longa trajet�ria no teatro.
A �nica transexual da regi�o, Melissa Matarazzo, 19, foi convidada a fazer uma ponta. "Fiz uma garota de programa", conta. Para localiz�-la, a reportagem passou por duas academias de Cabaceiras.
Wegmann conta que as condi��es f�sicas da regi�o interferem em sua interpreta��o. "Muda o tom da voz", diz. "O nariz fica seco, a gente sente a poeira entrar no corpo, se esfrega no banho, mas n�o adianta, a poeira fica", completa.
Para fazer seu papel, Irandhir Santos conta que visitou rezadeiras e benzedeiras, para incorporar ora��es a suas falas. Um gar�om no hotel onde est� hospedado conta � reportagem que o ator � introspectivo e costuma fazer caminhadas noturnas e solit�rias.
"S�o diurnas tamb�m", ele conserta. "Nelas, e nas conversas com as pessoas daqui, voc� encontra um ritmo, onde o sol determina se voc� vai sair de casa ou n�o. Quando est� quente, o jeito � esperar".
Recria-se, ent�o, ele conta, o sertanejo que � um durante o dia e outro � noite.
O jornalista Gustavo Fioratti viajou a convite da Globo.
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