Ditadura censurou pe�a 'O Rei da Vela' por agir contra regime democr�tico
Um "teatro de tese", "cheio de perplexidades, contradi��es e taras", avaliou a censora Maria Ribeiro de Almeida no primeiro documento que sugeria a proibi��o da montagem de "O Rei da Vela", em 12 de junho de 1968. (A pe�a agora volta ao cartaz em S�o Paulo ).
O espet�culo, sobre um agiota e seu s�cio que mant�m clientes enjaulados, havia estreado em outubro de 1967 no Teatro Oficina, e foi apresentada at� dezembro daquele ano em S�o Paulo, viajando em seguida para o Rio. De l�, foi � Europa em abril de 1968.
O grupo estava em cartaz em Paris durante o maio incendi�rio, e os atores participaram ativamente das manifesta��es. De volta ao Brasil, antes de retomarem os palcos, foram direto para a Divis�o de Censura de Divers�es P�blicas (DCDP) para renovar a libera��o do texto, obtida em julho de 1967, e que vencia no dia 30 de maio de 1968.
Foi a� que come�aram os problemas, como revelam as centenas de documentos in�ditos da ditadura militar relativos � pe�a e rec�m-digitalizados pelo Arquivo Nacional.
OSWALDO DE ANDRADE
S�o mais de 400 p�ginas sobre todas as tentativas de montar "O Rei da Vela" durante a vig�ncia da censura militar, de 1968 a 1985. Formul�rios, cartas, pareceres, indica��es de cortes, decis�es, telegramas, programas da pe�a e c�pias do texto de Oswald de Andrade na �ntegra. A quem os censores insistiam em se referir, ali�s, como Oswaldo de Andrade.
"A pe�a foi proibida at� numa montagem escolar, anos depois, em 1977, quase dez anos depois da censura ao Teatro Oficina", comenta o pesquisador do Arquivo Nacional Marcus Vinicius Pereira Alves, que acompanhou o in�cio do processo de digitaliza��o dos acervos da ditadura militar. O trabalho teve in�cio em 2011 com um aporte do BNDES e deve acabar em 2018.
Menos de uma semana depois das indica��es de "contradi��es e taras" da censora Maria Ribeiro de Almeida, viria o parecer definitivo, assinado por um segundo censor, Const�ncio Montebello, interditando o espet�culo em todo o Brasil. A gota d'�gua, para ele, foi justamente "o tumulto ainda vivo" do qual os atores participaram em Paris.
'PR�-BADERNA MUNDIAL'
"N�o cremos que essa participa��o tenha sido fortuita, e sim que tenha sido levada como uma contribui��o dos 'intelectuais' do Brasil � baderna que se delineava naquele pa�s", diz o texto de Montebello de duas p�ginas.
Mas esse seria s� um dos argumentos usados para proibir a pe�a em junho de 1968.
Em rela��o ao conte�do do espet�culo, Const�ncio diz que "o autor procurou mostrar uma sociedade corrompida moralmente, viciada, deteriorada, cada vez mais distante das camadas inferiores. A igreja apenas simbolizando conformismo para os pobres, por interesse dos ricos. [...] o 'socialismo' e o 'comunismo' como �nicas f�rmulas para atender aos interesses dos povos".
Mais adiante, como se desse conta de que "Oswaldo" havia escrito o texto em 1933, Const�ncio declara que "n�o importa alegarem o 'momento hist�rico' em que a pe�a foi escrita ou que a mesma retrata, pois seu conte�do serve para na atualidade manter acesa a chama de revolta contra os regimes democr�ticos. Antes espor�dico, o surto desta vez tornou-se, antes panflet�rio, hoje de a��o sangrenta".
O Oficina recorreu. A interdi��o foi mantida (na mesma �poca em que parte do grupo enfrentava a censura da pe�a "Roda-Viva"). O grupo recorreu de novo, e a pe�a s� foi liberada para maiores de 18 anos em novembro de 1968.
VALOR EDUCATIVO?
Mas os documentos mostram que o drama ia para novo ato. Em dezembro de 1970, em mais uma solicita��o para a renova��o do veto, os censores consideram que a pe�a tinha "mensagem negativa, procura o autor saturar a cabe�a dos menos avisados contra a classe capitalista".
Numa impress�o final, "ambi��o e desrespeito � pessoa humana" e "valor educativo: nenhum". A pe�a foi liberada at� 1975, mas com 39 anota��es de cortes. Falas como "o povo queria se opor" ou "o Brasil n�o ama seus soldados!" foram extirpadas.
A partir da�, qualquer companhia de teatro no Brasil que quisesse encenar a pe�a deveria respeitar os cortes. E assim aconteceu a grupos de Sorocaba, Porto Alegre, Juiz de Fora e Natal, entre outros.
Em 13 de outubro de 1980, com o abrandamento da censura, na figura do Conselho Superior de Censura, �rg�o criado para passar um pente fino nas proibi��es, com diretoria composta por diversos representantes da sociedade civil, "O Rei da Vela" passou por um escrut�nio final.
Coube ao teatr�logo Orlando Miranda Carvalho fazer um relat�rio sobre a import�ncia de Oswald para a cultura nacional, contextualizando o texto do espet�culo.
"Era mais ou menos como proibir Nelson Rodrigues. Voc� consegue imaginar a hist�ria do teatro brasileiro com pe�as do Nelson Rodrigues proibidas ou cortadas?", conta Orlando Miranda de Carvalho, aos 84 anos, que cumpriu a fun��o por 11 anos.
Para ele, o texto de Oswald � uma pe�a de literatura fant�stica, em que ele faz s�tiras, reflex�es e ainda dirige tudo. "Os censores n�o sabiam nada de arte", diz. Segundo Carvalho, o conselho implementou o desmanche do proibido.
Dizia o trecho final do seu parecer: "Cabe a este conselho eliminar mais um vexame para com a cultura nacional. E deixar bem claro, que, enquanto existir, seria uma garantia para eliminar as incompreens�es cometidas contra a cria��o art�stica. Sugerimos a libera��o de 'O Rei da Vela', de Oswald de Andrade".
QUASE CENSURA EM 67
Documentos mostram ainda que censores de Bras�lia queriam ter proibido a pe�a j� na primeira vez em que o Oficina submeteu o texto � libera��o, em julho de 1967, tr�s meses antes da estreia.
Mas a burocracia ajudou: como o grupo j� havia obtido a libera��o na inst�ncia estadual antes de submet�-la � federal, os censores consideraram que seria incoerente alter�-la.
Num desses pareceres, a indica��o de "partes agressivas" no texto, como em uma das falas do personagem Abelardo, que declara que "os soldados um dia deixar�o os quart�is atropeladamente para a revolu��o social".
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