Hoje � mais violento que em 1967, diz Z� Celso, que reencena 'O Rei da Vela'
Folhapress | ||
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Renato Borghi (dir.) e o Teatro Oficina em sua montagem original da pe�a "O Rei da Vela" |
Antes de montar seu cl�ssico "O Rei da Vela", em 1967, Jos� Celso Martinez Corr�a n�o tinha muito apre�o pelo texto de Oswald de Andrade: "Achava muito futuristoide". Hoje por�m acredita que a obra reverbera mais que � �poca. "Oswald dedicou a pe�a ao 'enjeitado', o teatro nacional. Agora, cara, t� mais enjeitado que nunca", diz o diretor.
O espet�culo, cuja encena��o original completa 50 anos nesta sexta (29), ser� remontado pelo Teatro Oficina, com estreia prevista para 21 de outubro no Sesc Pinheiros.
A ideia � recriar a montagem de 1967, a primeira do texto de Oswald, escrito 30 anos antes, que marcou o teatro brasileiro e o tropicalismo.
H�lio Eichbauer est� reconstruindo os cen�rios da primeira vers�o (com palco girat�rio, influ�ncia que Z� Celso teve da alem� Berliner Ensemble). Renato Borghi, 80, retoma o papel do agiota Abelardo 1�, dono de uma f�brica de velas. Al�m de dirigir, Z� Celso, 80, faz a virgem sessentona Dona Poloca, em vers�o transexual da personagem aristocr�tica.
Z� Celso e Borghi falaram � Folha sobre o cinquenten�rio:
Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
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Renato Borghi (esq.) e Z� Celso durante entrevista no Teatro Oficina |
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Folha - Como foi a primeira leitura de 'O Rei da Vela'??
Z� Celso - Foi a leitura do Renato, no apartamento dos pais da Germana Delamare, na orla de Ipanema. No que ele leu, todo mundo ficou boquiaberto. Ele pegou a eloqu�ncia de Oswald de Andrade.
Renato Borghi - Mas depois eu continuei lendo essa pe�a em v�rios apartamentos. A gente lia at� ficar concreto.
Z� - Agora ele faz par�dias de v�rios estilos, por exemplo, dos amores parnasianos.
Borghi - [como seu personagem Abelardo] Em sua vida toda, t�o cheia de nobreza, nunca deu para um plebeu?
Z� - [interpretando Poloca] Em segredo. Mas nunca em p�blico, como essa gar�a que Deus me deu por cunhada!
E a estreia, como foi a rea��o?
Z� - Um sil�ncio absoluto [a pe�a termina pedindo que o p�blico n�o aplauda]. Foi rompido por um cara que era bilheteiro. Era aquela emo��o, e a� ele rompeu os aplausos.
Borghi - Na estreia, achei engra�ado que ningu�m sabia realmente o que achou.
Z� - O [artista pl�stico e cen�grafo] Fl�vio Imp�rio, por exemplo, n�o entendeu nada. Voltou no dia seguinte. Porque a gente "bouleversou" tudo.
Borghi - As pessoas falavam "Que coisa, hein?", "Nossa". Mas emitir uma opini�o estava dif�cil naquele dia. Teve um homem que entrou no palco, n�o na estreia, noutra sess�o, e queria matar o autor [que morrera 13 anos antes].
Z� - Mandou chamar no peito o Oswald de Andrade.
E depois voc�s levaram "Rei da Vela" para outros lugares.
Z� - Depois n�s esteamos a pe�a em Paris.
Borghi - E a gente estava l� durante a revolu��o de maio [de 1968]
Z� - Quando o [cineasta Jean-Luc] Godard ia ser preso, a gente estava no hotel em frente e a gente jogou as cadeiras do hotel na pol�cia. A� o cara jogou uma bomba, eu fechei a janela e veio bater no meu olho. Eu fiquei completamento cego.
Boghi - E a �tala [Nandi, atriz da pe�a], muito louca, gritando pra pol�cia: "N'arretez pas, c'est Godard, c'est Godard" [n�o prenda, � Godard, � Godard]. O cara n�o teve d�vida, mirou e pum.
E qual foi o impacto da pe�a no p�blico?
Borghi - Na minha carreira, tem um Renato antes e depois de "O Rei da Vela". Antes eu era uma pessoa muito aplicada, eu estudava Stanisl�vski. Mas eu era muito tenso, tinha muita obriga��o de fazer bem. E de repente fez um "clique".
Z� - Mudou tudo, toda a minha gera��o se ligou no "Rei da Vela" e somou com "Terra em Transe", H�lio Oiticica, o Caetano viu a estreia. [Caetano Veloso depois musicou "Can��o da Jujuba" para a pe�a]
Borghi - Um dia ele apareceu com um poncho roxo e um jabuti. Caetano, n�?
Numa sess�o?
Borghi - �, levou um jabuti.
Z� - �, ele vinha com aquelas roupas que ele usava, como Chacrinha. Ali�s, o Chacrinha implicava porque dizia que a gente usava o nome dele, Abelardo. Mas era o Abelardo Pinto, o [palha�o] Piolin.
Borghi - Eu n�o sabia que ele implicava. Inclusive est�vamos inspirados nele [Chacrinha]. A gente pegou a cafonice brasileira, diluiu tudo e vomitou em forma po�tica.
Z� - Ali nasceu o teatro de entidade, muito brasileiro, no sentido do candombl�. Porque n�o s�o personagens, s�o entidades que ele [Oswald] criou.
Reprodu��o | ||
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Renato Borghi como Abelardo 1� na primeira montagem de "O Rei da Vela" |
Oswald trata de pol�tica, mas tamb�m � muito popular.
Z� - Sim. Os modernistas e os antrop�fagos eram f�s do Piolin. Gra�as � gera��o de Oswald, a burguesia era ilustrada, criaram Masp, Ibirapuera, Cinemateca. Agora � um lixo.
Borghi - Agora a burguesia n�o tem opini�o, � uma coisa amorfa. Um fascismo.
A pe�a contracena com isso?
Z� - Sim. Esta �poca � muito mais violenta do que em 1967 na ditadura pr�-AI-5. Agora est� pior, acho que o Brasil est� totalmente fascista. Estou sentindo no corpo.
E como o p�blico receber� "O Rei da Vela" hoje?
Borghi - � prov�vel que o p�blico tenha regredido. Pode ser que a pe�a seja acusada de homof�bica, essas coisas.
Z� - Pode ser politicamente incorreta. E ela �.
Borghi - T� uma bosta, n�?
Z� - Porque � uma pe�a sobre o patriarcalismo. E tem uma coisa no figurino acentuando o sexo dos atores. Isso nasceu porque a gente estava no restaurante Cervantes. Entrava qualquer homem e fazia assim [passa a m�o sobre o sexo]. Esse virou o gesto fundamental do Abelardo.
Borghi - O gesto fundamental, contin�ncia sexual.
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+ frases
"Essa pe�a � atual�ssima. Tem uma parte em que diz: 'A burguesia abandona a sua velha m�scara liberal. Declara-se cansada de carregar nos ombros os ideais de justi�a da humanidade, as conquistas da civiliza��o e outras besteiras!'"
Z� CELSO, diretor de 'O Rei da Vela'
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Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
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Z� Celso (esq.) e Renato Borghi durante entrevista no Teatro Oficina |
"[A situa��o do pa�s] piorou muito, n�? A parada est� muito pesada. Lembra o que a Cacilda [Becker] falava [na �poca da ditadura]? 'Eu vou botar meu decote e vou falar com o marechal e vamos levantar um dinheiro para o teatro'
RENATO BORGHI, ator da pe�a
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Ricardo Moraes - 1�.set.2006/Folhapress | ||
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H�lio Eichbauer no cen�rio do show "O Estrangeiro", de Caetano, baseado no cen�rio de "O Rei da Vela" |
"Conheci Z� e Renato em Praga em 1964, eles me chamaram para o Oficina quando terminasse o curso com o [cen�grafo Josef] Svoboda. Mas fui para Cuba e fiquei l� um ano, trabalhando. Vim com essa experi�ncia de Havana, da revolu��o tropical, e empreguei a cor no "Rei da Vela". � uma pe�a a partir dessa colagem que foi o teatro futurista e cubo-futurista russo, com o p� no Brasil do modernismo. Mistura vaudeville, circo, �pera. Na realidade de uma �poca de censura, ditadura, criamos um del�rio tropical"
H�LIO EICHBAUER, cen�grafo de "O Rei da Vela", em 1967 e agora
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Marcus Leoni - 31.ago.2017/Folhapress | ||
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O escritor e frade dominicano Frei Betto |
"Sempre brinquei com o Z� que ele fez do teatro a arma dele, que s� faltava a pe�a terminar com um ato definitivo: Colocar o detonador de dinamite no palco e acionar. Ela provocou um choque cultural incr�vel, mas tamb�m moral. Muita gente sa�a do teatro. E um frade ali, que morava no convento das Perdizes, onde moro at� hoje. De vez em quando o Z� viajava e l� estava eu, fazendo o papel de diretor. Cara, vou falar, sinceramente: A maior tenta��o que tive de abandonar a vida religiosa n�o foi casar, foi ser diretor"
FREI BETTO, frade dominicano e escritor, assistente de dire��o em 1967
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rea��es da plateia
Publicadas na Folha em 4 de outubro de 1967
"O que est� acontecendo com 'O Rei da Vela' em suas encena��es � algo in�dito. Pela primeira vez, acho, o teatro tem o poder de provocar rea��es num p�blico gelado", avaliou Jos� Celso Martinez Corr�a, dias ap�s a estreia in�dita que celebrou a reabertura do Teatro Oficina.
As rea��es do p�blico foram diversas, conforme reportagem publicada na Folha em 4 de outubro de 1967. Parte da plateia recorreu � pol�cia e at� � Divis�o de Divers�es P�blicas (censura), que, apesar de ter solicitado cortes no espet�culo, n�o alterou o contexto da obra de Oswald de Andrade.
"Felizmente temos uma censura que est� compreendendo o car�ter art�stico da pe�a e garantindo suas representa��es, apesar dos protestos de pessoas desatualizadas e que consideram-na ofensiva, subversiva e obscena", disse o diretor na �poca.
Na sexta (29), a plateia era formada em sua maioria por estudantes, que receberam o espet�culo como "uma bomba", conforme relatou a Folha.
No s�bado (30), as rea��es n�o foram diferentes. Cr�ticas ao texto, que o consideravam violento, pornogr�fico e de muito mau gosto, foram levantadas por parte do p�blico. Para Jos� Celso, o mau gosto era proposital e o bom gosto estava "sepultado".
A melhor rea��o dos espectadores, de acordo com o diretor, foi manifestada na terceira encena��o, no domingo de 1� de outubro, quando, ap�s terem aplaudido o espet�culo, deixaram o teatro sem "um aplauso".
Com um n�vel de moral "elevad�ssimo", como classificou Jos� Celso, a pe�a, que, segundo ele, escandalizou uma minoria do p�blico, impressionava pelo fato de apresentar "uma realidade brasileira que n�o queremos admitir e que precisa ser transformada em fun��o de uma realidade exterior".
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censura
Publicado na Folha em 11 de outubro de 1967
No dia 10 de outubro, dois agentes da Censura Federal e duas autoridades do Departamento de Ordem Pol�tica e Social (Dops) entraram no Oficina e, dirigindo-se ao palco, retiraram um canh�o de madeira que iluminava a plateia e em seguida pediram ao diretor a retirada de uma pe�a de pl�stico que servia de sorvete como simbologia ao pansexualismo.
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maio de 68
Publicado na Folha em 16 de maio 1968
As rea��es contr�rias aos preceitos de "O Rei da Vela" foram manifestadas tamb�m no Festival de Nancy (Fran�a), encerrado na primeira semana de maio de 1968. De um lado, cr�ticos focaram na obscenidade e de outro como "um espet�culo riqu�ssimo", atrelando-o a quest�es sociais e pol�ticas do Brasil na �poca.
Livraria da Folha
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