Como a m�sica eletr�nica fez de Kanye West um Deus do som
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Quando Kanye West estava promovendo "Yeezus", suas entrevistas tornaram-se um com�cio improvisado de seu pr�prio valor enquanto estilista. Ele precisava de um suporte, de uma "infraestrutura" para extravasar seus sonhos. Um dos pontos em que YE ainda bate forte diante de DJs e jornalistas estupefatos � como foi dif�cil a transi��o da sua vida de produtor para sua vida como rapper.
Kanye era contratado da gravadora Roc-A-Fella em 2000 como produtor, posto com o qual ganhou fama ao criar grande parte das batidas do cl�ssico "The Blueprint", de Jay-Z, lan�ado em 2001. N�o satisfeito em criar sucessos para gente como Janet Jackson e Alicia Keys, Kanye queria ficar do outro lado da mesa de mixagem. Um relutante Damon Dash (co-fundador da Roc-A-Fella) contratou Kanye como rapper no come�o dos anos 2000, uma decis�o tomada supostamente para manter Yeezy como produtor da sua firma.
O resto � hist�ria —uma linha do tempo fren�tica lotada de pilotos de s�ries fracassadas, [carros] Maybachs arrebentados e uma desconcertante apologia a Bill Cosby mas h� algo de revelador sobre Kanye nos seus primeiros passos. A hist�ria de um produtor t�o bom que os executivos estavam dispostos a torna-lo um rapper s� para n�o perder suas batidas.
A tem�tica do sampling sempre � usada para amarrar papos sobre Kanye West, o produtor e sua rela��o com o mundo da m�sica eletr�nica. Em grande parte, Kanye ajudou a reacender o fogo da produ��o que os f�s de hip-hop amavam. Refer�ncias � Chaka Khan, ganchos triunfantes numa pegada Lauryn Hill e os tons suaves de Marvin Gaye definiam seus primeiros discos —dando ao som de Kanye um calor e uma familiaridade que funcionam bem com suas letras arrogantes e ainda assim charmosas.
A expans�o de suas ambi��es musicais em 2007, veio junto a de seu crescente repert�rio com "Stronger", principal single de "Graduation", tra�ando uma trilha rica e fosforescente. Com um sample de "Harder, Better, Faster, Stronger", do Daft Punk, e o uso de vocoder, foi a primeira produ��o de Kanye com os dois p�s plantados na m�sica eletr�nica. Os sintetizadores acompanhavam uma batida 4/4 e o sample virou uma esp�cie de mantra baseado num aforisma de Nietzsche: "O que n�o me mata, me torna mais forte".
A can��o � incrivelmente emblem�tica provando o que ferramentas de produ��o digital aliadas a certas influ�ncias deram a Kanye a chance de soar como um super-homem. Assim como a arte de "Graduation" sugere, na capa do disco Kanye estaria al�ando voo e deixando a Terra para tr�s. Por mais que tenham sido necess�rias 75 diferentes mixagens, oito engenheiros de sons e 11 engenheiros de mixagem, esta can��o soa mesmo como um renascimento cinem�tico.
A �ltima faixa de "Graduation", "Big Brother" (com um synth �pico e oper�stico numa cortesia de Mike Dean) � o som de um rapper descobrindo um ba� de tesouros, e junto dele uma s�rie de novas possibilidades. De diversas formas, o maximalismo e a cafonice de "Stronger", se comparado a outros oferecimentos de Kanye � dance music, prova qu�o empolgado YE estava. "Stronger", inclusive, pode ser encarada como o som em que Kanye aprende a lidar com os equipamentos em si.
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Em termos de hardware, nenhuma ferramenta foi t�o importante no desenvolvimento art�stico de Kanye como o Roland TR-808 Rhythm Composer. Al�m do papel crucial desempenhado em 808s & Heartbreak de 2008, a bateria eletr�nica o ajudou a criar um novo minimalismo electro-pop que mudou a rota de sua carreira como um todo, bem como do hip-hop em geral. Inspirado pelo drama g�tico de baluartes do pop dos anos 80 como Gary Numan, bem como o compositor e multi-instrumentista Jon Brion, foi com esse equipo que Kanye adotou uma postura despojada, quase essencialista, ao gravar "Graduation". Al�m das justaposi��es gloriosas de panoramas sonoros distorcidos e chapados com ritmos tribais e melodias �picas, o compromisso de Kanye com o auto-tune neste disso lhe deram controle total sobre o instrumento que mais define seus esfor�os eletr�nicos —sua voz.
Quando questionado pelo implac�vel radialista nova-iorquino Charlamagne Tha God sobre o uso de auto-tune, Kanye disse usar o recurso, pois ele permite que sua voz fa�a coisas que n�o teria como fazer naturalmente. � uma resposta simples, mas captura a for�a que ele retira de sua rela��o com a m�sica eletr�nica. Tomemos "Hold On" como exemplo, single de 2013 do disco "My Name Is My Name", do presidente da G.O.O.D Music, o Pusha T. A contribui��o de Kanye aqui segue sem cr�ditos porque ele n�o fez nada al�m de instrumenta��o. Sua voz —distorcida pelo auto-tune— funciona como um sintetizador, gorjeando e lamuriando por baixo de uma batida de forma a dar uma camada extra de drama � m�sica.
Na sequ�ncia de 808s, Kanye disse em um debate que o auto-tune era "a coisa mais divertida de se usar!. Esta mudan�a estil�stica sinalizou o come�o de um relacionamento com a nova tecnologia que segue central na cria��o da sua sonoridade. O crescendo arrasa-cora��es de "Runaway" (2010), a alegria abafada de "Only One" (2014) e os alertas g�lidos de "Wolves" (2014); trata-se de um grito computadorizado que define o som de West, marcando talvez um dos mais duradouros e suaves casamentos entre hip-hop e instrumenta��o experimental. Kanye, ao tratar sua pr�pria voz como "instrumento", permitiu que as linhas entre os dois mundos se misturassem de forma que n�o se reconhe�a mais tais limites. Sons como "Guilt Trip" (2013) e "Fade" (2015) (esta �ltima com um sample de "Mystery of Love", do Mr Fingers, de 1985) trilham o caminho entre rap e m�sica instrumental. As letras ficam de lado e a sonoridade assume o foco central.
Apesar de sempre trabalhar com novas fronteiras por meio de suas produ��es, Kanye forjou fortes relacionamentos com outras figuras da m�sica eletr�nica, algo capaz de transformar ambas as carreiras. Inclusive a de Hudson Mowahke, que assinou com a G.O.O.D Music como produtor dando sequ�ncia a seu trabalho com a compila��o "Cruel Summer", lan�ada pelo selo de West em 2011. A lista dos participantes desta compila��o � grande demais para ser absorvida, mas trata-se do produto de um curador de pulso firme. O trampo de HudMo em "Mercy" ainda soa t�o porrada quatro anos depois, e quando o TNGHT estava no �pice, sua vers�o feroz de "Cold" (2012) foi t�o sinistra que Kanye fez at� uma participa��o no seu show intimista no Brooklyn. Os metais sem limites do TNGHT apareceram mais uma vez em "Yeezus", dando a "Blood On The Leaves" (2013) seu cl�max atormentado.
O maximalismo fornecido por HudMo era exatamente o que Kanye precisava. Enquanto artista e pessoa p�blica, Kanye pode muito bem ser culpado por falar demais: tentar passar cinco pontos filos�ficos diferentes em uma s� frase, ao mesmo tempo em que, de algum jeito, relaciona tudo com o pre�o da seda. N�o que seus argumentos n�o valham nada, mas a emo��o precisava ser melhor organizada —exatamente o que HudMo, dentre outros, ajudaram a fazer. O feito cumulativo de "Yeezus" � a canaliza��o da frustra��o esmagadora e desejos pessoais conflitantes em um �nico som. Desde l�, HudMo figurou nos cr�ditos de trabalhos de pesos pesados como Drake e, apesar de exigente com seus clientes, tornou-se uma das figuras mais procuradas no meio da produ��o do rap. Sua velocidade caracter�stica deu as bases para colabora��es como "Attak" (2014) de Rustie e Danny Brown, ampliando ainda mais as margens do "rap" e diminuindo a dist�ncia entre o happy hardcore de Glasgow e a m�sica dos clubes de Chi-town.
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Com Hudson Mohawke a tiracolo, as agora famosas sess�es de "Yeezus" em Paris contaram com um Kanye operando uma pol�tica de recrutamento de alcance ainda maior que seus esfor�os anteriores, transformando o disco em uma plataforma de lan�amento para uma s�rie de novos talentos subversivos. Evian Christ foi arrancado de sua vida como professor de trainees e levado a Paris para fornecer as pauladas e vocais contorcidos de "I'm in It", que apresentou ao mundo suas destruidoras e cativantes cria��es no Tri Angle. O DJ franc�s de techno Gesaffelstein subiu a bordo para colaborar com o Daft Punk em "Black Skinhead" e "Send It Up" —o que o levou subitamente ao mesmo n�vel de profissionalismo de Banglater e Homem-Christo. Talvez o egresso mais din�mico de "Yeezus" tenha sido Arca, cujas desconstru��es experimentais em trap e eletr�nica s� haviam aparecido nas prateleiras da UNO NYC at� ent�o. De repente, suas pedradas cerebrais e agudas caracter�sticas surgiram em quase metade do disco de hip-hop mais falado do ano.
As contribui��es feitas por estas jovens foram a for�a por tr�s de "Yeezus". Por mais que seu trabalho no disco tenha elevado o status de todos os envolvidos, os colaboradores n�o se definiam somente pelo que deram a Kanye West. O que eles faziam ia al�m de criar batidas para sua aprova��o. Assim como a 808 deu forma a "808s & Heartbreak" e ofereceu uma articula��o s�nica da tem�tica de luto e perda do disco, as ambi��es ilimitadas destes produtores de vanguarda provaram ser exatamente aquilo que Kanye precisava em "Yeezus" —um trabalho bizarro, alien�gena e raivoso num disco que buscava desafiar o status quo. � o disco definitivo em termos de suas empreitadas no dance alternativo, pois se trata da concretiza��o de quanto as texturas digitais empoderam sua voz. Voc� poderia ver todas as entrevistas, ler todas as letras e estudar cada pixel da arte cuidadosamente calculada, mas at� ouvir o synth pulsante de "On Sight", n�o ter� como sacar a sinergia.
Os produtores que trabalham com Kanye raramente falam do processo. Quem � do contra pode muito bem falar que isso tudo � o rapper escondendo sua falta de envolvimento, substituindo-a por uma m�stica e mist�rio —uma equipe de influenciadores lhe dando tudo que precisa para ficar plantado no zeitgeist. Mas se voc� tra�ar sua rela��o com a m�sica eletr�nica diante os temas pessoais de cada disco, a conta bate. Da empolga��o intergal�ctica de "Stronger" �s texturas ambiente de "Wolves", West � um colaborador no mais puro sentido do termo. A m�sica eletr�nica d� a Kanye exatamente aquilo pelo que sempre lutou: liberdade. Ao poder editar e modificar sem limita��es ele � (ao menos em termos sonoros) onipotente. Ele olha de cima para baixo para os meros mortais, ampliando sua vis�o e ajustando-a at� que a mensagem fique o mais clara poss�vel atrav�s de palavras. Transmitindo sua alma atrav�s das m�quinas.
Tradu��o THIAGO "�NDIO" SILVA
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