São Paulo, Domingo, 21 de Novembro de 1999
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CRÍTICA

Ratinho e os aristocratas do nada

FERNANDO DE BARROS E SILVA

OS nativos estavam eufóricos. "Pistoleira, pistoleira, pistoleira", gritavam em coro da arquibancada, diante da silhueta da mulher protegida por um biombo fosco ao fundo do palco. Sentado numa poltrona, rosto e identidade descobertos, o amante acusava a antiga parceira de outros vários adultérios e seu marido, o suposto traído, de cometer atos de pedofilia com as próprias filhas do casal. Atordoada, ela desmentia, em meio à gritaria do auditório ("pistoleira..."). Ratinho dava corda, passava a palavra a um e outro, comandando a cena. Nas suas mãos, havia um envelope fechado com um exame de DNA. Detalhe: a mulher estava grávida. O "objetivo" ali era saber se o ex-amante era o pai da criança. Era. Aberto o envelope, os dois foram subitamente removidos do palco pela produção, como lixo varrido. Entrou no ar outra atração. Corta.
Minutos mais tarde, um outro "caso". O pai de uma de duas meninas estupradas no Paraná vingou a filha matando os dois supostos criminosos. Quatro tiros na cabeça de um, seis na do outro, este último espancado a pauladas antes de ser fuzilado. O pai está preso, e a reportagem do programa do Ratinho o entrevista ao vivo da delegacia, depois de ter reconstituído as cenas dos estupros e das chacinas, dramatizando-as em detalhes.
Os nativos na platéia se comovem com as declarações do pai, miserável e desdentado. Aplaudem seu depoimento comovido, sobretudo quando diz que não havia criado sua filha com tanto sacrifício para vê-la estuprada por vagabundos. Ratinho toma as rédeas. Condena repetidas vezes a "justiça com as próprias mãos", argumentando que às vezes se cometem "injustiças" (isto é, lincham-se inocentes). Diz a seguir que já foi a favor da pena de morte, mas que não é mais, pelo mesmo motivo: pode-se matar inocentes. Condena a atitude do pai para em seguida "absolvê-lo" na prática, atacando a lentidão da Justiça, a omissão e o descaso da polícia. O saldo do conjunto é inequívoco: o auditório aprovava os linchamentos, entusiasticamente, quase aos urros. Corta. O programa segue em ritmo circense, com quadro de calouros, acrobatas etc.
Ambas as cenas foram exibidas na última terça-feira. Vamos dizer que são... chocantes? Parece frívolo diante da quantidade de problemas e de barbaridades que trazem à tona. Mas nada ali era inventado, nem havia filmes para se responsabilizar pela violência. Debater "O Clube da Luta"? A questão, aqui, é muito mais embaixo. Estamos falando de pobres, da exploração abjeta da miséria também, não há dúvida. Corta. Mudemos de canal.
Estamos agora no oásis da TV Cultura, no mesmo dia e no mesmo horário, diante desse cemitério do jornalismo chamado "Observatório da Imprensa". A violência está em pauta, e o secretário nacional dos Direitos Humanos, José Gregori, é um dos convidados. É dele a idéia de que no próximo dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, as TVs abertas não exibam nenhuma cena de sexo ou de violência. A "luz publicitária" acendeu na cabeça do secretário durante uma "reunião de emergência", convocada na semana passada em função dos assassinatos no MorumbiShopping. Se depender de Gregori, a TV no próximo dia 10 será um conto de fadas. Alguém poderá perguntar: mas, e se, por um acaso remoto, alguma criança for degolada por outras num desses calabouços mirins, a Febem? Ora, estaremos todos vendo o reprise do "Criança Esperança" ou do "Castelo Rá-Tim-Bum". Os jornais que se incumbam de nos devolver à realidade no dia 11.
Sarcasmo do crítico diante de um assunto tão sério? Pois não, porque o assunto é sério, mas o governo não é. É falastrão. Promete códigos de ética (até quando essa piada?), brinca de pressionar emissoras, mostra serviço e se mobiliza de afogadilho diante do crime espetacular no shopping de zona sul; é, em uma palavra, adepto da "ética virtual". A questão não é retórica. A TV francesa, por exemplo, é um lixo, uma das piores do mundo, como se gosta de dizer por aqui, mas lá, na França, a mesma sociedade que a assiste não toleraria a notícia de que uma criança pobre foi trancada por seguranças num frigorífico de supermercado. A República, lá, não é virtual.
Mas aqui, no reino de "Rá-Tim-Bum", há uma corte de "humanistas" de cera, bem representados no "Observatório da Imprensa", que dá chancela ao blablablá inócuo do discurso oficial, cuja vocação para o inessencial é inesgotável. São humanistas chapa-branca, vassalos do governo para quem os problemas do país são virtuais. É assim, aliás, que eles vêem as pessoas, como virtualidades.
Ratinho é uma excrescência, não há dúvida, mas a hipocrisia fria desses senhores, que vivem na Suíça da sua imaginação delirante, brincando de boas maneiras na TV, é tão ou mais intolerável, este o ponto. A alegria dos pobres hoje é aparecer na TV, inclusive para serem humilhados; a diversão dessa gente educada e nutrida é escondê-los da mídia. Entre os linchadores eletrônicos e os aristocratas do nada a distância é menor do que parece, ou virtual. No meio, há um abismo. Antigamente, chamava-se Brasil.


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