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FERNANDO GABEIRA
Os tropeços de um aprendiz de transgênicos
Eu já era ignorante em biologia pré-molecular. Agora,
como se diz no Rio, estou passando um perrengue para acompanhá-la, quando se produz arroz
com vitamina A, tomate que evita câncer de próstata e outros prodígios de sua fase de reinvenção
da natureza.
Minha primeira ilusão foi pensar que a responsabilidade se esgotava num projeto para rotular
os alimentos geneticamente modificados. Na cabeça, a medida
era uma combinação bem intencionada. Não limitava a liberdade de criação científica e aplicava,
de uma certa forma, o princípio
da precaução, um dos mais importantes na política de biossegurança. Sob essa fórmula, os produtores estariam livres para inventar, e os consumidores informados para rejeitar ou não os novos produtos.
No mundo ideal que construi,
imaginei a agricultura produzindo alimentos geneticamente modificados, alimentos plantados
tradicionalmente com agrotóxicos e os orgânicos, que teriam
uma faixa crescente do mercado.
Assim poderíamos explorar todas
as possibilidades. Jogar em todas
as posições que o mundo globalizado nos abria.
Com o tempo, foram surgindo
inquietantes questões. A leitura
da experiência dos plantadores
de alimentos geneticamente modificados no Canadá e nos EUA
levantou a primeira delas. As lavouras próximas eram quase
sempre contaminadas pelos organismos novos.
Tomei conhecimento de inúmeros processos na Justiça dos dois
países, dos abalos que a lavoura
orgânica sofreu no Canadá, por
exemplo. Ali, onde se planta canola, de cuja semente se faz o
óleo, as lavouras orgânicas foram
arruinadas. A presença dos geneticamente modificados não só
contamina fisicamente a lavoura
como cria uma desconfiança nos
consumidores.
O vento pode levar sementes a
até 800 metros de distância, e a
polinização cruzada acaba fazendo com que lavouras não-transgênicas tenham suas condições
alteradas. Talvez esse problema
tenha uma solução fácil, pensei.
Basta definir o espaço de cada
plantação, levando em conta essas variáveis.
Nesse momento em que tudo estava por se resolver, surgiu uma
outra questão. Como definir as
áreas? O órgão ambiental norte-americano, EPA (Agência de Proteção Ambiental), costuma dizer
quais são os limites para uma
plantação transgênica. E, mesmo
assim, a agência falha na tarefa
de evitar a contaminação. Quando se trata de uma soja resistente
a herbicida, por exemplo, é preciso evitar que desapareçam todos
os insetos que não resistem ao veneno. Dentro da área plantada,
sobrevivem os resistentes. Fora
dela, os outros têm uma chance
para que o desequilíbrio não se
instale com mais vigor.
Enfim, a demarcação de áreas
precisa levantar um sofisticado
estudo de impacto ambiental.
Mas suponhamos que se faça
mesmo uma blindagem em torno
dos transgênicos, algo que não logrou até o momento. Como aferir
o êxito dessa blindagem? Surgiu
aí uma outra dificuldade: o leque
de testes indispensáveis para checar o resultado constantemente é
bastante caro. Além disso, o próprio herbicida vai ficando mais
complexo à medida que enfrenta
plantas que se tornam mais resistentes a ele. Isso quer dizer mais
despesas.
Só aí comecei a imaginar nossa
dificuldade em monitorar o gado
e em reduzir a carga de antibióticos nos frangos. São tarefas que
talvez merecessem esse pouco recurso que temos para investir.
Quando os canadenses inventaram que havia doença da vaca
louca por aqui, demos um salto
no controle do gado para atender
melhor a exportação e para não
ficarmos vulneráveis nessa guerra
comercial. Custou dinheiro, certamente.
Onde, realmente, minha proposta de rotulagem embatucou
foi na questão de examinar a situação das sementes e perceber
que os transgênicos, produzidos
por empresas gigantescas, lentamente vão ocupando espaço, reduzindo as ofertas das outras modalidades e criando uma realidade material na qual a escolha será
cada vez mais difícil.
Tudo isso ao lado dos depoimentos dos plantadores norte-americanos e canadenses. Alguns
deles, arrependidos de terem entrado nos transgênicos, me fazem
pensar no meu projeto original.
São tanto os problemas ainda por
serem solucionados que é melhor
pedir um tempo, uma moratória.
Sei que algumas cabeças, ainda
ligadas à Revolução Industrial,
podem comparar essa moratória
com a reação dos operários ludistas, que destruíam as máquinas
com medo do desemprego. Ali estava em jogo a produtividade.
Agora estão em jogo a produtividade e a administração dos riscos, uma combinação que não se
pode ignorar nas tomadas de decisão modernas.
Dito assim, parece que os transgênicos são mais produtivos, só
que mais perigosos potencialmente. Esse mito da produtividade
também foi abalado. Os estudos a
que tive acesso mostram que apenas o milho BT superou as lavouras convencionais. Tanto a soja
como a canola perderam na comparação. Se avaliarmos o comportamento de cada país em relação ao tema, os norte-americanos, que entraram de cabeça nos
transgênicos, tiveram reduzida
sua cota de participação no mercado agrícola; o Brasil teve a cota
aumentada.
Quando peço tempo, não penso
em obstrução. Acho apenas que
deveríamos formar um pequeno
grupo de estudiosos que recolhesse todas as dúvidas sobre o tema e
visitasse o Canadá e os Estados
Unidos.
Não para falar apenas com as
grandes corporações, que dizem
maravilhas dos seus produtos,
mas também com alguns dos 200
grupos que combatem os transgênicos, com as uniões de agricultores nos dois países, com advogados que trabalham com o tema
na Justiça. Enfim, pessoas que pudessem levar diversas questões,
inclusive sobre o preço de um
aparato de monitoramento, para
que voltássemos a discutir o tema.
O caminho da lavoura tradicional e, sobretudo da orgânica, foi
prejudicado, mas não se fechou
com os transgênicos. Os orgânicos
na Inglaterra já representam 3%
da área plantada do país e faturam em torno de US$ 30 bilhões
por ano.
É complexo definir as estradas
do futuro. Talvez, para contornar
essa dificuldade, pensei num
mundo onde todos coexistissem
em paz. Mais uma vez, constatei
que o buraco é mais embaixo.
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