São Paulo, segunda-feira, 16 de dezembro de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Os tropeços de um aprendiz de transgênicos

Eu já era ignorante em biologia pré-molecular. Agora, como se diz no Rio, estou passando um perrengue para acompanhá-la, quando se produz arroz com vitamina A, tomate que evita câncer de próstata e outros prodígios de sua fase de reinvenção da natureza.
Minha primeira ilusão foi pensar que a responsabilidade se esgotava num projeto para rotular os alimentos geneticamente modificados. Na cabeça, a medida era uma combinação bem intencionada. Não limitava a liberdade de criação científica e aplicava, de uma certa forma, o princípio da precaução, um dos mais importantes na política de biossegurança. Sob essa fórmula, os produtores estariam livres para inventar, e os consumidores informados para rejeitar ou não os novos produtos.
No mundo ideal que construi, imaginei a agricultura produzindo alimentos geneticamente modificados, alimentos plantados tradicionalmente com agrotóxicos e os orgânicos, que teriam uma faixa crescente do mercado. Assim poderíamos explorar todas as possibilidades. Jogar em todas as posições que o mundo globalizado nos abria.
Com o tempo, foram surgindo inquietantes questões. A leitura da experiência dos plantadores de alimentos geneticamente modificados no Canadá e nos EUA levantou a primeira delas. As lavouras próximas eram quase sempre contaminadas pelos organismos novos.
Tomei conhecimento de inúmeros processos na Justiça dos dois países, dos abalos que a lavoura orgânica sofreu no Canadá, por exemplo. Ali, onde se planta canola, de cuja semente se faz o óleo, as lavouras orgânicas foram arruinadas. A presença dos geneticamente modificados não só contamina fisicamente a lavoura como cria uma desconfiança nos consumidores.
O vento pode levar sementes a até 800 metros de distância, e a polinização cruzada acaba fazendo com que lavouras não-transgênicas tenham suas condições alteradas. Talvez esse problema tenha uma solução fácil, pensei. Basta definir o espaço de cada plantação, levando em conta essas variáveis.
Nesse momento em que tudo estava por se resolver, surgiu uma outra questão. Como definir as áreas? O órgão ambiental norte-americano, EPA (Agência de Proteção Ambiental), costuma dizer quais são os limites para uma plantação transgênica. E, mesmo assim, a agência falha na tarefa de evitar a contaminação. Quando se trata de uma soja resistente a herbicida, por exemplo, é preciso evitar que desapareçam todos os insetos que não resistem ao veneno. Dentro da área plantada, sobrevivem os resistentes. Fora dela, os outros têm uma chance para que o desequilíbrio não se instale com mais vigor.
Enfim, a demarcação de áreas precisa levantar um sofisticado estudo de impacto ambiental. Mas suponhamos que se faça mesmo uma blindagem em torno dos transgênicos, algo que não logrou até o momento. Como aferir o êxito dessa blindagem? Surgiu aí uma outra dificuldade: o leque de testes indispensáveis para checar o resultado constantemente é bastante caro. Além disso, o próprio herbicida vai ficando mais complexo à medida que enfrenta plantas que se tornam mais resistentes a ele. Isso quer dizer mais despesas.
Só aí comecei a imaginar nossa dificuldade em monitorar o gado e em reduzir a carga de antibióticos nos frangos. São tarefas que talvez merecessem esse pouco recurso que temos para investir.
Quando os canadenses inventaram que havia doença da vaca louca por aqui, demos um salto no controle do gado para atender melhor a exportação e para não ficarmos vulneráveis nessa guerra comercial. Custou dinheiro, certamente.
Onde, realmente, minha proposta de rotulagem embatucou foi na questão de examinar a situação das sementes e perceber que os transgênicos, produzidos por empresas gigantescas, lentamente vão ocupando espaço, reduzindo as ofertas das outras modalidades e criando uma realidade material na qual a escolha será cada vez mais difícil.
Tudo isso ao lado dos depoimentos dos plantadores norte-americanos e canadenses. Alguns deles, arrependidos de terem entrado nos transgênicos, me fazem pensar no meu projeto original. São tanto os problemas ainda por serem solucionados que é melhor pedir um tempo, uma moratória.
Sei que algumas cabeças, ainda ligadas à Revolução Industrial, podem comparar essa moratória com a reação dos operários ludistas, que destruíam as máquinas com medo do desemprego. Ali estava em jogo a produtividade. Agora estão em jogo a produtividade e a administração dos riscos, uma combinação que não se pode ignorar nas tomadas de decisão modernas.
Dito assim, parece que os transgênicos são mais produtivos, só que mais perigosos potencialmente. Esse mito da produtividade também foi abalado. Os estudos a que tive acesso mostram que apenas o milho BT superou as lavouras convencionais. Tanto a soja como a canola perderam na comparação. Se avaliarmos o comportamento de cada país em relação ao tema, os norte-americanos, que entraram de cabeça nos transgênicos, tiveram reduzida sua cota de participação no mercado agrícola; o Brasil teve a cota aumentada.
Quando peço tempo, não penso em obstrução. Acho apenas que deveríamos formar um pequeno grupo de estudiosos que recolhesse todas as dúvidas sobre o tema e visitasse o Canadá e os Estados Unidos.
Não para falar apenas com as grandes corporações, que dizem maravilhas dos seus produtos, mas também com alguns dos 200 grupos que combatem os transgênicos, com as uniões de agricultores nos dois países, com advogados que trabalham com o tema na Justiça. Enfim, pessoas que pudessem levar diversas questões, inclusive sobre o preço de um aparato de monitoramento, para que voltássemos a discutir o tema.
O caminho da lavoura tradicional e, sobretudo da orgânica, foi prejudicado, mas não se fechou com os transgênicos. Os orgânicos na Inglaterra já representam 3% da área plantada do país e faturam em torno de US$ 30 bilhões por ano.
É complexo definir as estradas do futuro. Talvez, para contornar essa dificuldade, pensei num mundo onde todos coexistissem em paz. Mais uma vez, constatei que o buraco é mais embaixo.


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