São Paulo, segunda-feira, 16 de dezembro de 2002

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ILHA DO TESOURO

Náufrago escocês que viveu no arquipélago chileno de 1704 a 1709 pode ter inspirado clássico da literatura

Robinson Crusoé teria vivido na ilha

Heloisa Helena Lupinacci/Folha Imagem
Turistas remam em caiaque perto de penhasco no lado leste da ilha, na baía de El Pangal


HELOISA HELENA LUPINACCI
ENVIADA ESPECIAL AO CHILE

Os 100 km 2 de superfície da ilha Robinson Crusoé parecem não conseguir guardar o tanto de histórias que testemunharam.
A principal delas é a de Alexander Selkirk, de longe o habitante mais ilustre da história local, que morou ali durante quatro anos e quatro meses, a partir de setembro de 1704. A história está contada no livro "A Ilha de Selkirk - A Verdadeira História de Robinson Crusoé", de Diana Souhami (ed. Ediouro) e começa em 1703.
Foi nesse ano que o pirata inglês William Dampier montou uma expedição para os mares do sul em busca do galeão Manila, navio que carregaria um tesouro.
Dampier era um velho pirata e tinha até publicado um livro com suas histórias de batalhas e explorações (leia texto abaixo).
Em abril daquele ano, escolheu os homens de sua tripulação, entre eles estava o escocês Selkirk, nascido em 1680, marinheiro desde os 15 anos. A expedição formada pelos navios Cinque Ports e St. George partiu da Irlanda em 1703, e poucos depois começaram os problemas de convívio a bordo.
Em uma briga entre o capitão e seu primeiro-tenente, os navios se separaram. Um ficou sob o comando de Dampier e o outro sob o de Thomas Stradling.
Selkirk ficou a bordo do navio comandado por Stradling, o Cinque Ports. Eles aportaram em 1704 no arquipélago de Juan Fernandéz. Ali, depois de uma briga, Stradling largou Selkirk na ilha.
O escocês construiu uma cabana, domesticou cabritos e gatos e criou uma rotina de sobrevivência. Aprendeu a caçar, conheceu cada trecho da ilha e esperou pelo dia em que fosse resgatado. O tempo passou, a ilha virou a casa de Selkirk e sua história passou a fazer parte do patrimônio local.
Em 1708, partiu, do mesmo porto na Irlanda, uma expedição de duas fragatas, que, em 1709, apontaram no horizonte de Selkirk, que observava o mar. O náufrago foi resgatado pela expedição e chegou à Inglaterra em 1711.
Os dois comandantes que o resgataram, Woodes Rogers e Edward Cooke, queriam escrever sobre a viagem e contar a história de Selkirk. E contaram. Cooke, no livro "Uma Viagem ao Mar Sul e ao Redor do Mundo Realizadas nos Anos de 1708, 1709, 1710 e 1711 Pelos Navios Duke e Dutchess, de Bristol", lançado em março de 1712, reservou um parágrafo à história do náufrago.
Rogers, com a ajuda de um amigo chamado Richard Steele, deu mais atenção à história que "mostrava a piedade cristã, a vaidade dos ricos e o caráter indomável dos homens". Eles entrevistaram Selkirk e escreveram "A Cruising Voyage Around the World" (um cruzeiro ao redor do mundo), lançado no mesmo ano que o livro de Cooke.
Em 1719, Selkirk tinha virado um oficial da Marinha inglesa, quando Daniel Defoe retomou sua história e escreveu o livro "A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoé, Navegante de York. Viveu 28 anos Sozinho em uma Ilha Isolada na Costa da América, Perto da Nascente do Rio Orinoque. Sobreviveu a um Naufrágio, quando Todos os Outros Morreram. Relato de Como Ele Foi, enfim, Curiosamente Libertado por Piratas" (1719).
Esse é o longo título do primeiro romance da história da literatura inglesa. Defoe, ou simplesmente Foe, já que o nome de seu pai era James Foe, tinha 60 anos quando o livro foi publicado. Morreu aos 72 anos com uma obra bibliográfica desafiadora à história: estima-se que ele tenha escrito até 550 títulos, alguns sob pseudônimo.
Acusado de ser "um mentiroso despudorado, cujo exagero cômico nos detalhes lhe dava um caráter documental", Defoe criou um mito ao dar à luz Crusoé. A sua inspiração, embora seja reivindicada pelos chilenos como sendo Selkirk e sua ilha no Pacífico, pode ter sido outra, ou mais de uma.
A historiadora portuguesa Fernanda Durão Ferreira lançou, em 1998, o livro "A Inspiração Portuguesa de Robinson Crusoé", em que afirma que o autor usou os relatos dos viajantes lusitanos dos séculos 15 e 16 para se inspirar.
Ele teria encontrado em Fernão Lopes -um marujo português condenado à morte que fugiu e foi parar na ilha de Santa Helena, em Angola, onde morreu em 1546- a semente para sua história. Lopes morou na ilha com um javanês, que seria o Sexta-Feira, e teve sua história contada por escritores portugueses como Gaspar Correia e Fernão Lopes de Castañeda.
Pouco importa, na verdade, se Crusoé foi inspirado em um escocês ou em um lusitano. O verdadeiro Crusoé é inglês, de York, e teve seu sobrenome adaptado do complicado Kreutznaer. Pelo menos é assim que se apresenta nas primeiras páginas do romance.
E assim ficou célebre como um vanguardista que, no meio da selva, gerou o primeiro relato de um liberal individualista, influenciando a teoria econômica mundial como uma experiência prática das teorias de Adam Smith.
O relato de Crusoé é a primeira narrativa em que as atividades de um homem viram o ponto central da história. Trata-se do clímax do indivíduo autônomo.
Além da economia, ele influenciou a educação. Jean-Jacques Rousseau indicava o livro como leitura obrigatória, pois substituiria todos os outros como uma fonte de "educação natural".
Antes das revoluções que causou pelo mundo, mudando desde a economia até o nome da ilha Robinson Crusoé, originalmente Santa Cecília, e depois Masatierra, Crusoé esteve aqui no Brasil.
O marinheiro veio para a Bahia e fez fortuna em Salvador. O trecho que narra sua estada no Brasil está nas edições originais do romance, como a de 1930, da Companhia Editora Nacional.
Crusoé aprendeu a fabricar açúcar, naturalizou-se português (ou seja, ele pode ter sido, sim, escocês e português ao mesmo tempo, deixando chilenos e angolanos felizes por abrigar a ilha em que morou) e ficado rico no Brasil, de onde partiu em 1656, para a aventura que terminou com o naufrágio na tal ilha. E daqui para frente a história já é conhecida.
Quanto à ilha em que Selkirk morou, a que fica no Chile, ela guarda muitas outras histórias, que têm como personagens piratas, tesouros e batalhas navais.


Heloisa Helena Lupinacci viajou a convite da Echo Tour Operadora.



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