São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Índice

Dicionário possui mais de 200 verbetes sobre música pop, do blues aos gêneros atuais
O alfabeto da música popular

LUIZ TATIT

A trilha sonora do século 20 nas principais nações do Ocidente -e atingindo pontos do Oriente nos últimos decênios- foi sem dúvida a música popular. Do blues clássico à profusão atual dos gêneros, representativos de subculturas jovens como o rap, o tecno, o heavy metal, o significado cultural e comercial dos produtos da indústria fonográfica foi ganhando ao longo do século proporções tão imensas que acabaram por suscitar estudos urgentes numa área tradicionalmente fora do foco de reflexão da elite cultural.
O lançamento do "Vocabulário de Música Pop" -versão brasileira do volume "Key Concepts in Popular Music", de Roy Shuker- revela, com a devida abrangência, o estágio de desenvolvimento em que se encontram as pesquisas sobre o gigantesco e complexo mundo da música popular. Operando com mais de duas centenas de verbetes que se reportam uns aos outros, o autor articula os conhecimentos acumulados por uma já extensa bibliografia dedicada ao tema e, nesse processo, consegue esclarecer termos e conceitos que, embora nos sejam familiares, flutuam num linguajar inespecífico, próprio dos ambientes em que foram gerados.

"World music"
Para o leitor brasileiro, não é fácil enfrentar a auto-suficiência musical dos povos anglo-saxões. Todo o esplendor da música popular do nosso país é reduzido a uma acepção extremamente ampla de "bossa nova", classificada como "world music", ou seja, não pertencente ao eixo anglo-americano. Roy Shuker é neozelandês e, como tal, já se satisfaz com o imenso repertório produzido na Inglaterra, nos EUA, na Austrália e em seu próprio país. Sua escolha é compreensível e reflete bem a real importância atribuída ao Brasil e à língua portuguesa nas nações consideradas como o centro do planeta.
Mas como o leitor (e o músico) brasileiro se interessa -e deve se interessar- pela exuberante produção desses países de língua inglesa, o trabalho de Roy Shuker surge como algo oportuno e esclarecedor em muitos aspectos.
Trata-se, em primeiro lugar, de uma pesquisa bem delimitada que não se propõe a considerar nomes de artistas ou de bandas como verbetes isolados. Seu principal objeto de estudo são os gêneros produzidos comercialmente e lançados no mercado. A música erudita ou as formas menos populares do jazz só são convocadas na medida em que exercem influências incontestáveis na concepção das canções de massa. Nesse sentido, se quisermos reduzir a dois os metagêneros que norteiam a seleção dos verbetes do vocabulário em pauta, chegaremos naturalmente à noção de rock (e suas intermináveis variantes) e de música pop, considerada como extensão menos exigente do rock, voltada especialmente para o rádio, o videoclipe e as paradas de sucesso.
Para determinar a extensão desses dois metagêneros, o pesquisador vai estabelecendo aos poucos, por meio dos cruzamentos conceituais dos verbetes, uma verdadeira tipologia dos gêneros, subgêneros, estilos e modas que compõem o universo pop. Nesse sentido, "funk", "reggae", "rap", "heavy", "punk" são expressões musicais e estilísticas que expandem os horizontes do rock para as frentes juvenis, assim como "rythm'n'blues, "country", "folk", "gospel" são emblemas de origem que mantêm a cultura rock em contato com seu passado sonoro. As "raves", o "grunge", a "new wave" são exemplos de subculturas que circundam os ambientes musicais, alimentando ideologicamente as produções.

Esferas de reflexão
No que diz respeito às abordagens desse corpo até certo ponto completo de noções, o autor seleciona um número considerável de orientações que já voltaram seus métodos para a descrição da música popular. Além da musicologia e da sociologia (seu enfoque privilegiado), Shuker examina especificamente as abordagens marxistas (sobretudo a Escola de Frankfurt), as metodologias da semiótica, da análise de discurso, da etnomusicologia e até as concepções fluidas do pós-modernismo, retirando daí um material teórico bastante consequente não só para a melhor compreensão da linguagem musical popular, mas também para o estudo dos ambientes culturais e ideológicos que cercam as etapas de criação e difusão das obras. Surgem, então, algumas esferas de reflexão que ultrapassam em muito as ambições de um simples guia musical.
Podemos destacar, de início, a própria crítica à musicologia que, utilizando procedimentos descritivos oriundos da música erudita, permanece sempre aquém -embora pense estar além- dos recursos e objetivos adotados pela produção popular. Seguindo as idéias de McClary & Walser, o autor revela que as aplicações da musicologia ao rock chegam a ser objeto de "zombaria" por manifestar uma "falha crônica" de abordagem, ou seja, jamais tratam "do que está realmente em jogo na composição musical".
Outro momento interessante está no verbete "imperialismo cultural", cuja tese pressupõe que haja identidades nacionais puras. A influência da indústria fonográfica transnacional é tão poderosa que nem sempre é possível estabelecer com clareza a distinção entre o que é símbolo autêntico de um país e o que vem de fora. No mundo da canção de massa, a própria identidade nacional já está impregnada da sonoridade gerada em outros países. Até que ponto, portanto, pode-se fazer alusão a um imperialismo cultural nesse setor? E ainda há o fenômeno da "internacionalização do local". As grandes gravadoras têm interesse em inserir produtos regionais em estruturas mais amplas para estender o alcance do seu mercado e, nesse ensejo, promovem alguns cenários particulares como o som de Liverpool, o som de Seattle, o Chicago blues a uma escala internacional, assim como revelam ao mundo variadas modalidades como a música "rai" argelina, o "juju" nigeriano, o "zouk" caribenho ou o "bhangra" anglo-indiano.

Música e educação
Shuker ainda toca num dos pontos cruciais que poderiam determinar a inserção da música popular entre as matérias dignas de reflexão intelectual, pelo menos nos países que experimentam sua indiscutível hegemonia: a educação. Com um verbete específico para o tema, o pesquisador neozelandês discorre, de um lado, sobre as dificuldades de introdução do rock e da música popular em geral nos currículos tradicionalmente formulados para atender às particularidades da música erudita e, de outro, sobre a decepção dos estudantes de música que vêem descartadas suas preferências musicais assim que ingressam num curso superior.
Ao mesmo tempo, mostra que há uma certa contradição em se tentar incorporar ao currículo uma manifestação musical que representa para muitos estudantes sua "vida extra-escolar": um discurso sistematizador e crítico sobre o rock, por exemplo, pode ameaçar algumas convicções prévias que asseguram ao aluno sua própria identidade construída à margem da escola.
Com tudo isso, entretanto, já há sinais inequívocos de que a música popular chegou à universidade para ficar. Numerosas teses defendidas sobre a matéria vêm conquistando o respeito do ambiente acadêmico e das agências de fomento à pesquisa. Algumas faculdades já outorgam diplomas específicos a seus formandos em música popular. Outras incorporam a disciplina em currículos de música (erudita), de estudos sociais, de mídia e comunicação ou de estudos antropológicos e culturais. Pelo menos, não há mais dúvida de que o objeto existe e requer modelos teóricos especiais para a sua investigação.
Roy Shuker ressalta ainda, em diversas passagens, a mudança de perspectiva no âmbito da música popular ocasionada por aquilo que a imprensa denominou "invasão britânica" no início da década de 1960. De fato, a chegada avassaladora dos Beatles nas paradas de sucesso dos EUA não só abriu o mercado para outras bandas britânicas (The Dave Clark Five, Gerry and the Pacemakers, The Rolling Stones etc.), como também gerou a formação ideal para um grupo de rock: quatro ou cinco integrantes dedilhando guitarra e baixo elétricos, tocando bateria e fazendo vocais.
Isso desencadeou a aparição das famosas "bandas de garagem" que se proliferaram nos EUA e em todas as regiões do mundo sintonizadas com a cultura rock. Os jovens passaram a desenvolver seu próprio aprendizado musical ao realizar versões "cover" dos sucessos de rádio, nas quais reproduziam visual e auditivamente os gestos e a sonoridade de seus ídolos. Estava implantado o embrião do autodidatismo que, a partir dessa época, carreou um número incalculável de jovens para a atividade musical.
Vem da era dos Beatles também a frequente fusão dos papéis de intérprete e compositor na mesma personalidade artística. Os cantores e músicos das bandas passaram a ser os criadores da produção que executavam. Esse conceito de autoria, que foi se estendendo das canções individuais aos arranjos, à concepção geral do disco que abrangia ainda o seu encarte e sua capa (basta lembrarmos de "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band") contribuiu em muito para a transformação de um produto até então comprometido apenas com o mercado em obra dotada de valor estético.
"Vocabulário de Música Pop" traz outras interessantes reflexões sobre as identidades existentes entre alta tecnologia (capitalista) e música alternativa (independente), já que ambas operam com autonomia buscando a própria revelação; sobre a riqueza contida nos numerosos formatos que veiculam a música popular (álbuns de vinil, CDs, videoclipes, MTV); sobre as diferenças de andamento e de batidas rítmicas acarretando alterações emocionais no plano do ouvinte; sobre o papel ativo desse ouvinte que, ao selecionar estações de rádio e repertórios em fita magnética (e hoje em CD), revela sua competência musical, igualmente adquirida à margem da escola; sobre os reais interesses da indústria fonográfica internacional dos nossos dias, voltados bem mais para a administração dos direitos autorais do que para o controle dos bens materiais; enfim, sobre fãs, gostos, turnês, vanguarda, gerações, modos de cantar, censura, afeto, Internet, dança, crítica, televisão, tudo que já conhecemos fora de uma abordagem sistemática.
E, quando ainda não se dispõe de um método adequado para a ordenação dos conceitos que gravitam em torno de uma atividade como a da música popular, apenas recentemente visitada por teóricos e pensadores, nada mais seguro do que começar o trabalho por uma ordem consagrada e pouco comprometedora: a ordem alfabética.



Vocabulário de Música Pop
Roy Shuker Tradução: Carlos Szlak Hedra (Tel. 0/xx/21/585-2047) 327 págs., R$ 29,00



Luiz Tatit é músico e professor de linguística na USP.

Texto Anterior: Réplica - Jorge Caldeira: Lição de ignorância
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.