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Dicionário possui mais de 200 verbetes sobre música pop, do blues aos
gêneros atuais
O alfabeto da música popular
LUIZ TATIT
A trilha sonora do século 20 nas principais nações do Ocidente -e atingindo
pontos do Oriente nos últimos decênios- foi sem dúvida a música popular.
Do blues clássico à profusão atual dos gêneros, representativos de subculturas jovens como o rap, o tecno, o heavy metal,
o significado cultural e comercial dos
produtos da indústria fonográfica foi ganhando ao longo do século proporções
tão imensas que acabaram por suscitar
estudos urgentes numa área tradicionalmente fora do foco de reflexão da elite
cultural.
O lançamento do "Vocabulário de Música Pop" -versão brasileira do volume
"Key Concepts in Popular Music", de
Roy Shuker- revela, com a devida
abrangência, o estágio de desenvolvimento em que se encontram as pesquisas
sobre o gigantesco e complexo mundo da
música popular. Operando com mais de
duas centenas de verbetes que se reportam uns aos outros, o autor articula os conhecimentos acumulados por uma já extensa bibliografia dedicada ao tema e,
nesse processo, consegue esclarecer termos e conceitos que, embora nos sejam
familiares, flutuam num linguajar inespecífico, próprio dos ambientes em que
foram gerados.
"World music"
Para o leitor brasileiro, não é fácil enfrentar a auto-suficiência musical dos povos anglo-saxões. Todo o esplendor da
música popular do nosso país é reduzido
a uma acepção extremamente ampla de
"bossa nova", classificada como "world
music", ou seja, não pertencente ao eixo
anglo-americano. Roy Shuker é neozelandês e, como tal, já se satisfaz com o
imenso repertório produzido na Inglaterra, nos EUA, na Austrália e em seu
próprio país. Sua escolha é compreensível e reflete bem a real importância atribuída ao Brasil e à língua portuguesa nas
nações consideradas como o centro do
planeta.
Mas como o leitor (e o músico) brasileiro se interessa -e deve se interessar-
pela exuberante produção desses países
de língua inglesa, o trabalho de Roy Shuker surge como algo oportuno e esclarecedor em muitos aspectos.
Trata-se, em primeiro lugar, de uma
pesquisa bem delimitada que não se propõe a considerar nomes de artistas ou de
bandas como verbetes isolados. Seu principal objeto de estudo são os gêneros produzidos comercialmente e lançados no
mercado. A música erudita ou as formas
menos populares do jazz só são convocadas na medida em que exercem influências incontestáveis na concepção das canções de massa. Nesse sentido, se quisermos reduzir a dois os metagêneros que
norteiam a seleção dos verbetes do vocabulário em pauta, chegaremos naturalmente à noção de rock (e suas intermináveis variantes) e de música pop, considerada como extensão menos exigente do
rock, voltada especialmente para o rádio,
o videoclipe e as paradas de sucesso.
Para determinar a extensão desses dois
metagêneros, o pesquisador vai estabelecendo aos poucos, por meio dos cruzamentos conceituais dos verbetes, uma
verdadeira tipologia dos gêneros, subgêneros, estilos e modas que compõem o
universo pop. Nesse sentido, "funk",
"reggae", "rap", "heavy", "punk" são expressões musicais e estilísticas que expandem os horizontes do rock para as
frentes juvenis, assim como
"rythm'n'blues, "country", "folk", "gospel" são emblemas de origem que mantêm a cultura rock em contato com seu
passado sonoro. As "raves", o "grunge", a
"new wave" são exemplos de subculturas
que circundam os ambientes musicais,
alimentando ideologicamente as produções.
Esferas de reflexão
No que diz respeito às abordagens desse corpo até certo ponto completo de noções, o autor seleciona um número considerável de orientações que já voltaram
seus métodos para a descrição da música
popular. Além da musicologia e da sociologia (seu enfoque privilegiado), Shuker
examina especificamente as abordagens
marxistas (sobretudo a Escola de Frankfurt), as metodologias da semiótica, da
análise de discurso, da etnomusicologia e
até as concepções fluidas do pós-modernismo, retirando daí um material teórico
bastante consequente não só para a melhor compreensão da linguagem musical
popular, mas também para o estudo dos
ambientes culturais e ideológicos que
cercam as etapas de criação e difusão das
obras. Surgem, então, algumas esferas de
reflexão que ultrapassam em muito as
ambições de um simples guia musical.
Podemos destacar, de início, a própria
crítica à musicologia que, utilizando procedimentos descritivos oriundos da música erudita, permanece sempre aquém
-embora pense estar além- dos recursos e objetivos adotados pela produção
popular. Seguindo as idéias de McClary
& Walser, o autor revela que as aplicações da musicologia ao rock chegam a ser
objeto de "zombaria" por manifestar
uma "falha crônica" de abordagem, ou
seja, jamais tratam "do que está realmente em jogo na composição musical".
Outro momento interessante está no
verbete "imperialismo cultural", cuja tese
pressupõe que haja identidades nacionais puras. A influência da indústria fonográfica transnacional é tão poderosa
que nem sempre é possível estabelecer
com clareza a distinção entre o que é símbolo autêntico de um país e o que vem de
fora. No mundo da canção de massa, a
própria identidade nacional já está impregnada da sonoridade gerada em outros países. Até que ponto, portanto, pode-se fazer alusão a um imperialismo cultural nesse setor? E ainda há o fenômeno
da "internacionalização do local". As
grandes gravadoras têm interesse em inserir produtos regionais em estruturas
mais amplas para estender o alcance do
seu mercado e, nesse ensejo, promovem
alguns cenários particulares como o som
de Liverpool, o som de Seattle, o Chicago
blues a uma escala internacional, assim
como revelam ao mundo variadas modalidades como a música "rai" argelina, o
"juju" nigeriano, o "zouk" caribenho ou
o "bhangra" anglo-indiano.
Música e educação
Shuker ainda toca num dos pontos cruciais que poderiam determinar a inserção
da música popular entre as matérias dignas de reflexão intelectual, pelo menos
nos países que experimentam sua indiscutível hegemonia: a educação. Com um
verbete específico para o tema, o pesquisador neozelandês discorre, de um lado,
sobre as dificuldades de introdução do
rock e da música popular em geral nos
currículos tradicionalmente formulados
para atender às particularidades da música erudita e, de outro, sobre a decepção
dos estudantes de música que vêem descartadas suas preferências musicais assim que ingressam num curso superior.
Ao mesmo tempo, mostra que há uma
certa contradição em se tentar incorporar
ao currículo uma manifestação musical
que representa para muitos estudantes
sua "vida extra-escolar": um discurso sistematizador e crítico sobre o rock, por
exemplo, pode ameaçar algumas convicções prévias que asseguram ao aluno sua
própria identidade construída à margem
da escola.
Com tudo isso, entretanto, já há sinais
inequívocos de que a música popular
chegou à universidade para ficar. Numerosas teses defendidas sobre a matéria
vêm conquistando o respeito do ambiente acadêmico e das agências de fomento à
pesquisa. Algumas faculdades já outorgam diplomas específicos a seus formandos em música popular. Outras incorporam a disciplina em currículos de música
(erudita), de estudos sociais, de mídia e
comunicação ou de estudos antropológicos e culturais. Pelo menos, não há mais
dúvida de que o objeto existe e requer
modelos teóricos especiais para a sua investigação.
Roy Shuker ressalta ainda, em diversas
passagens, a mudança de perspectiva no
âmbito da música popular ocasionada
por aquilo que a imprensa denominou
"invasão britânica" no início da década
de 1960. De fato, a chegada avassaladora
dos Beatles nas paradas de sucesso dos
EUA não só abriu o mercado para outras
bandas britânicas (The Dave Clark Five,
Gerry and the Pacemakers, The Rolling
Stones etc.), como também gerou a formação ideal para um grupo de rock: quatro ou cinco integrantes dedilhando guitarra e baixo elétricos, tocando bateria e
fazendo vocais.
Isso desencadeou a aparição das famosas "bandas de garagem" que se proliferaram nos EUA e em todas as regiões do
mundo sintonizadas com a cultura rock.
Os jovens passaram a desenvolver seu
próprio aprendizado musical ao realizar
versões "cover" dos sucessos de rádio,
nas quais reproduziam visual e auditivamente os gestos e a sonoridade de seus
ídolos. Estava implantado o embrião do
autodidatismo que, a partir dessa época,
carreou um número incalculável de jovens para a atividade musical.
Vem da era dos Beatles também a frequente fusão dos papéis de intérprete e
compositor na mesma personalidade artística. Os cantores e músicos das bandas
passaram a ser os criadores da produção
que executavam. Esse conceito de autoria, que foi se estendendo das canções individuais aos arranjos, à concepção geral
do disco que abrangia ainda o seu encarte
e sua capa (basta lembrarmos de "Sgt.
Pepper's Lonely Hearts Club Band") contribuiu em muito para a transformação
de um produto até então comprometido
apenas com o mercado em obra dotada
de valor estético.
"Vocabulário de Música Pop" traz outras interessantes reflexões sobre as identidades existentes entre alta tecnologia
(capitalista) e música alternativa (independente), já que ambas operam com autonomia buscando a própria revelação;
sobre a riqueza contida nos numerosos
formatos que veiculam a música popular
(álbuns de vinil, CDs, videoclipes, MTV);
sobre as diferenças de andamento e de
batidas rítmicas acarretando alterações
emocionais no plano do ouvinte; sobre o
papel ativo desse ouvinte que, ao selecionar estações de rádio e repertórios em fita
magnética (e hoje em CD), revela sua
competência musical, igualmente adquirida à margem da escola; sobre os reais
interesses da indústria fonográfica internacional dos nossos dias, voltados bem
mais para a administração dos direitos
autorais do que para o controle dos bens
materiais; enfim, sobre fãs, gostos, turnês, vanguarda, gerações, modos de cantar, censura, afeto, Internet, dança, crítica, televisão, tudo que já conhecemos fora de uma abordagem sistemática.
E, quando ainda não se dispõe de um
método adequado para a ordenação dos
conceitos que gravitam em torno de uma
atividade como a da música popular,
apenas recentemente visitada por teóricos e pensadores, nada mais seguro do
que começar o trabalho por uma ordem
consagrada e pouco comprometedora: a
ordem alfabética.
Vocabulário de Música Pop
Roy Shuker
Tradução: Carlos Szlak
Hedra (Tel. 0/xx/21/585-2047)
327 págs., R$ 29,00
Luiz Tatit é músico e professor de linguística na USP.
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