São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


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Crítico francês examina o que é um texto literário
A leitura democrática

OLGÁRIA MATOS

"O Demônio da Teoria" tem por objetivo examinar o que é um texto literário, procedendo a uma história da constituição de seus gêneros e da leitura, bem como de seus trânsitos. Lembre-se, por exemplo, o que Plutarco, em suas "Moralia", esperava dos jovens leitores: na poesia deviam procurar a filosofia, e reconhecer no poeta o "fingidor", com o que institui a poesia como uma propedêutica à filosofia. E, como "crítico", interessa-lhe o conteúdo da poesia, não questões de estilo.
O trabalho de Compagnon recepciona as mutações pelas quais passa o sentido da leitura, a organização retórica dos textos e o campo de leitores; interroga, também, a natureza e a função do crítico a partir das noções de literatura, autoria, mundo, leitor, estilo, história, valor. À maneira do humanista, discute o papel da literatura na educação, na interpretação e em sua transmissão. Como moralista, procura "despertar a vigilância do leitor, inquietá-lo nas suas certezas, abalar sua inocência ou seu torpor, alertá-lo, oferecendo-lhe os rudimentos de uma consciência teórica da literatura"

Consciência da ambiguidade
Recorre, para tanto, a Platão e Aristóteles, Montaigne e Leibniz, Jakobson e Heidegger, Rancière e Adorno. Não há, aqui, relativismo ou ecletismo, mas consciência da ambiguidade na qual se constituem as obras de pensamento.
Sob a denominação "demônios", Compagnon evoca, de certa forma, o "daimon" socrático, gênio perturbador e guia misterioso a indicar que "as verdadeiras questões não se esgotam nas respostas". Os recursos teóricos deste livro não são disjuntivos; ao contrário, operam por antíteses e acréscimos: hermenêutica e positivismo, texto em si e para nós, mímesis e seu contrário. E como "entidade benfazeja", o "daimon" convida a refletir sobre as maneiras de ler e interpretar, de se ler e se auto-interpretar: "Essa é a mais corrente definição humanista de literatura". "A Divina Comédia", "Dom Quixote", "Madame Bovary" propiciam um conhecimento do mundo e dos homens; quanto ao leitor, ele é "esclarecido", "livre, maior, independente: seu objetivo é menos compreender um livro do que compreender a si mesmo por intermédio do livro; aliás, ele não pode compreender o livro se não se compreende, a ele próprio, graças a esse livro".
Abordagem estrutural, genética, fenomenológica, analítica, histórica não exaurem o sentido de enunciados porque a significação não é uma e una: "uma série de termos", escreve Compagnon, "coloca, sem nunca resolvê-lo inteiramente, o problema da relação entre o texto e a realidade, ou entre o texto e o mundo: mímesis , evidentemente, é um termo aristotélico traduzido por "imitação" ou "representação" (a escolha de um ou outro é em si uma opção teórica), "verossimilhança", "ficção", "ilusão" ou mesmo "mentira" e, é claro, "realismo", "referente" ou "referência", "descrição'".

O texto incompleto
Assim, o conceito transpõe um sentido imediato, conotativo, literal. Na crítica literária, como na filosófica, a realidade é visualizada como texto incompleto, a ser decifrado pelo engajamento metódico. Escrita e leitura, método e crítica evitam a institucionalização de sentidos, referem-se a diferentes estados de percepção com respeito à significação das obras, da telepatia à interpretação analítica, da causalidade à liberdade: "A leitura tem a ver com empatia, projeção, identificação. Ela maltrata obrigatoriamente o livro, adapta-o às preocupações do leitor".
Para compreender a pluralidade dos olhares e pontos de vista sobre as obras, o autor recenseia diversas considerações acerca do estatuto da ficção, porque "a literatura mescla continuamente o mundo real e o mundo possível". Indício aristotélico das reflexões de Compagnon, esse livro ressignifica o conceito de "imitação" diante da ilusão, ao imaginário, ao verdadeiro: "No sentido mais amplo", escreve, "literatura é tudo o que é impresso (ou mesmo manuscrito), são todos os livros que a biblioteca contém. Essa acepção corresponde à noção clássica de "belas-letras", as quais compreendiam tudo o que a retórica e a poética podiam produzir, não somente a ficção, mas também a história, a filosofia e a ciência e, ainda, toda a eloquência".
De imediato, toda leitura pode ser dita "mimética e é uma modalidade de "ilusão'". Ilusão, mas não erro. Se o erro é o contrário da verdade, a ilusão opõe-se à realidade como o não-ser ao ser.
Porém, mostra Compagnon, a noção de "falsa realidade" seria uma contradição. Eis porque a mímesis requer estabelecer as relações de conflito ou conveniência entre realidade e imaginação: "A negação da realidade, proclamada pela teoria literária (e por Barthes), não é mais que uma negação, ou o que Freud chama de uma denegação, isto é, uma negação que coexiste, numa espécie de consciência dupla, com a crença incoercível de que um livro fala, "apesar de tudo", do mundo, ou que ele constitui um mundo, ou um "quase-mundo", como falam os filósofos analíticos a respeito da ficção".
Na mímesis, o dizer não é concebido como espelhamento do real, tampouco é mera fabulação subjetiva, mas se dá na afinidade entre sujeito e objeto. A virtualidade semântica de objetos e palavras torna-os inassimiláveis à ordem de um sujeito, pois há sempre algo de impróprio e de figurado nas palavras, para além da simples ordenação e repetição. Compagnon refere-se à norma "cartesiana" da clareza como cânone da verdade, reconhecendo nela a "hybris", que confere à subjetividade do crítico estabelecer a identidade e a natureza do texto literário. Por isso, "importa elucidar nossos procedimentos elementares de análise, suas pressuposições e suas implicações".
O autor indica duas posições polêmicas e extremas acerca da interpretação de texto: a intencionalista e a antiintencionalista, como as de Picard e Barthes. Para o primeiro, é imprescindível procurar no texto o que o autor quis dizer, sua intenção "clara e lúcida"; para o outro, só se encontra no texto aquilo que ele diz, o que independe das intenções do autor, não existindo, pois, qualquer critério de validade interpretativa. Quanto a isso, Compagnon observa: "Gostaria de desvencilhar-me da armadilha absurda entre objetivismo e subjetivismo, ou entre o determinismo e o relativismo". Mais adiante, precisa melhor o problema, pois a questão é "como se encontram, se defrontam praticamente o leitor implícito (conceitual, fenomenológico) e os leitores empíricos e históricos? Estes se curvam necessariamente às instruções do texto? E, se não se curvam, como detectar suas transgressões? No horizonte, surge uma interrogação difícil: a leitura real poderia constituir um objeto teórico?".

Ideal de clareza
Ao final, para o autor, a intenção é o único critério concebível -mas com um acréscimo importante: ela não se identifica "com premeditação "clara e lúcida'". Esta representa o ideal clássico de clareza, aquele que prescinde das difíceis relações entre literatura e história, evitando a questão da passagem do tempo, pois pretende que seja inerente ao cânone e suas normas determinar a obra literária e o belo, conferindo ao objeto a beleza, como uma propriedade objetiva das coisas. O cânone é o "sagrado", o consagrado e "perene": "A literatura clássica (...) ignora o spleen".
Para Compagnon, a modernidade não permite adotar essa atitude tranquilizadora, uma vez que o sujeito do conhecimento não é apenas lógico, mas emotivo, interpretativo; assim, há palavras que, mais ouvidas do que entendidas, se preenchem de significação, "numa alegria arbitrária da imaginação". Na falta de uma objetividade essencialista, imparcial, o sentido da beleza motiva-se subjetivamente. O juízo do gosto, já o mostrara Kant, é subjetivo, mas, ao se pretender necessário e universal, vem a constituir-se como ilusão -pois o conhecimento dessa ilusão não basta para dissipá-la. O crítico é um ilusionista involuntário.
Esse estudo se constrói segundo uma perspectiva política e humanista, para a qual o leitor é o modelo do homem livre. Sua crítica é "democrática": "Como a democracia, a crítica da crítica é dos regimes o menos ruim e, se não sabemos qual é o melhor, não temos dúvida de que os outros são piores. Não advoguei, pois, a causa de uma teoria entre outras, nem a do senso comum, mas a da crítica a todas as teorias, inclusive ao senso comum".
Com respeito à obra, "crítica democrática" é experiência que procura compartilhá-la como um bem comum; é, também, perplexidade diante da "anarquia discursiva" que reabre. Em suma: "A dobra crítica, o conhecimento das hipóteses problemáticas que regem nossos procedimentos são vitais (...). A perplexidade é a única moral literária".



O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum
Antoine Compagnon Tradução: Cleonice Paes Barreto Mourão Ed. da UFMG (Tel. 0/xx/31/499-4650) 305 págs., R$ 32,00



Olgária Matos é professora de filosofia na USP e autora, entre outros livros, de "O Iluminismo Visionário -Walter Benjamin Leitor de Descartes e Kant" (Brasiliense).

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