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Crítico francês examina o que é um texto literário
A leitura democrática
OLGÁRIA MATOS
"O Demônio da Teoria" tem por objetivo examinar o que é um texto literário,
procedendo a uma história da constituição de seus gêneros e da leitura, bem como de seus trânsitos. Lembre-se, por
exemplo, o que Plutarco, em suas "Moralia", esperava dos jovens leitores: na poesia deviam procurar a filosofia, e reconhecer no poeta o "fingidor", com o que
institui a poesia como uma propedêutica
à filosofia. E, como "crítico", interessa-lhe o conteúdo da poesia, não questões de
estilo.
O trabalho de Compagnon recepciona
as mutações pelas quais passa o sentido
da leitura, a organização retórica dos textos e o campo de leitores; interroga, também, a natureza e a função do crítico a
partir das noções de literatura, autoria,
mundo, leitor, estilo, história, valor. À
maneira do humanista, discute o papel
da literatura na educação, na interpretação e em sua transmissão. Como moralista, procura "despertar a vigilância do leitor, inquietá-lo nas suas certezas, abalar
sua inocência ou seu torpor, alertá-lo,
oferecendo-lhe os rudimentos de uma
consciência teórica da literatura"
Consciência da ambiguidade
Recorre, para tanto, a Platão e Aristóteles, Montaigne e Leibniz, Jakobson e Heidegger, Rancière e Adorno. Não há, aqui,
relativismo ou ecletismo, mas consciência da ambiguidade na qual se constituem as obras de pensamento.
Sob a denominação "demônios", Compagnon evoca, de certa forma, o "daimon" socrático, gênio perturbador e guia
misterioso a indicar que "as verdadeiras
questões não se esgotam nas respostas".
Os recursos teóricos deste livro não são
disjuntivos; ao contrário, operam por antíteses e acréscimos: hermenêutica e positivismo, texto em si e para nós, mímesis e
seu contrário. E como "entidade benfazeja", o "daimon" convida a refletir sobre as
maneiras de ler e interpretar, de se ler e se
auto-interpretar: "Essa é a mais corrente
definição humanista de literatura". "A
Divina Comédia", "Dom Quixote", "Madame Bovary" propiciam um conhecimento do mundo e dos homens; quanto
ao leitor, ele é "esclarecido", "livre, maior,
independente: seu objetivo é menos
compreender um livro do que compreender a si mesmo por intermédio do
livro; aliás, ele não pode compreender o
livro se não se compreende, a ele próprio,
graças a esse livro".
Abordagem estrutural, genética, fenomenológica, analítica, histórica não exaurem o sentido de enunciados porque a
significação não é uma e una: "uma série
de termos", escreve Compagnon, "coloca, sem nunca resolvê-lo inteiramente, o
problema da relação entre o texto e a realidade, ou entre o texto e o mundo: mímesis , evidentemente, é um termo aristotélico traduzido por "imitação" ou "representação" (a escolha de um ou outro é
em si uma opção teórica), "verossimilhança", "ficção", "ilusão" ou mesmo "mentira" e, é claro, "realismo", "referente" ou
"referência", "descrição'".
O texto incompleto
Assim, o conceito transpõe um sentido
imediato, conotativo, literal. Na crítica literária, como na filosófica, a realidade é
visualizada como texto incompleto, a ser
decifrado pelo engajamento metódico.
Escrita e leitura, método e crítica evitam a
institucionalização de sentidos, referem-se a diferentes estados de percepção com
respeito à significação das obras, da telepatia à interpretação analítica, da causalidade à liberdade: "A leitura tem a ver com
empatia, projeção, identificação. Ela maltrata obrigatoriamente o livro, adapta-o
às preocupações do leitor".
Para compreender a pluralidade dos
olhares e pontos de vista sobre as obras, o
autor recenseia diversas considerações
acerca do estatuto da ficção, porque "a literatura mescla continuamente o mundo
real e o mundo possível". Indício aristotélico das reflexões de Compagnon, esse
livro ressignifica o conceito de "imitação" diante da ilusão, ao imaginário, ao
verdadeiro: "No sentido mais amplo", escreve, "literatura é tudo o que é impresso
(ou mesmo manuscrito), são todos os livros que a biblioteca contém. Essa acepção corresponde à noção clássica de "belas-letras", as quais compreendiam tudo o
que a retórica e a poética podiam produzir, não somente a ficção, mas também a
história, a filosofia e a ciência e, ainda, toda a eloquência".
De imediato, toda leitura pode ser dita
"mimética e é uma modalidade de "ilusão'". Ilusão, mas não erro. Se o erro é o
contrário da verdade, a ilusão opõe-se à
realidade como o não-ser ao ser.
Porém, mostra Compagnon, a noção
de "falsa realidade" seria uma contradição. Eis porque a mímesis requer estabelecer as relações de conflito ou conveniência entre realidade e imaginação: "A
negação da realidade, proclamada pela
teoria literária (e por Barthes), não é mais
que uma negação, ou o que Freud chama
de uma denegação, isto é, uma negação
que coexiste, numa espécie de consciência dupla, com a crença incoercível de
que um livro fala, "apesar de tudo", do
mundo, ou que ele constitui um mundo,
ou um "quase-mundo", como falam os filósofos analíticos a respeito da ficção".
Na mímesis, o dizer não é concebido
como espelhamento do real, tampouco é
mera fabulação subjetiva, mas se dá na
afinidade entre sujeito e objeto. A virtualidade semântica de objetos e palavras
torna-os inassimiláveis à ordem de um
sujeito, pois há sempre algo de impróprio
e de figurado nas palavras, para além da
simples ordenação e repetição. Compagnon refere-se à norma "cartesiana" da
clareza como cânone da verdade, reconhecendo nela a "hybris", que confere à
subjetividade do crítico estabelecer a
identidade e a natureza do texto literário.
Por isso, "importa elucidar nossos procedimentos elementares de análise, suas
pressuposições e suas implicações".
O autor indica duas posições polêmicas
e extremas acerca da interpretação de
texto: a intencionalista e a antiintencionalista, como as de Picard e Barthes. Para
o primeiro, é imprescindível procurar no
texto o que o autor quis dizer, sua intenção "clara e lúcida"; para o outro, só se
encontra no texto aquilo que ele diz, o
que independe das intenções do autor,
não existindo, pois, qualquer critério de
validade interpretativa. Quanto a isso,
Compagnon observa: "Gostaria de desvencilhar-me da armadilha absurda entre objetivismo e subjetivismo, ou entre o
determinismo e o relativismo". Mais
adiante, precisa melhor o problema, pois
a questão é "como se encontram, se defrontam praticamente o leitor implícito
(conceitual, fenomenológico) e os leitores empíricos e históricos? Estes se curvam necessariamente às instruções do
texto? E, se não se curvam, como detectar
suas transgressões? No horizonte, surge
uma interrogação difícil: a leitura real poderia constituir um objeto teórico?".
Ideal de clareza
Ao final, para o autor, a intenção é o
único critério concebível -mas com um
acréscimo importante: ela não se identifica "com premeditação "clara e lúcida'".
Esta representa o ideal clássico de clareza,
aquele que prescinde das difíceis relações
entre literatura e história, evitando a
questão da passagem do tempo, pois pretende que seja inerente ao cânone e suas
normas determinar a obra literária e o
belo, conferindo ao objeto a beleza, como
uma propriedade objetiva das coisas. O
cânone é o "sagrado", o consagrado e
"perene": "A literatura clássica (...) ignora o spleen".
Para Compagnon, a modernidade não
permite adotar essa atitude tranquilizadora, uma vez que o sujeito do conhecimento não é apenas lógico, mas emotivo,
interpretativo; assim, há palavras que,
mais ouvidas do que entendidas, se
preenchem de significação, "numa alegria arbitrária da imaginação". Na falta
de uma objetividade essencialista, imparcial, o sentido da beleza motiva-se subjetivamente. O juízo do gosto, já o mostrara
Kant, é subjetivo, mas, ao se pretender
necessário e universal, vem a constituir-se como ilusão -pois o conhecimento
dessa ilusão não basta para dissipá-la. O
crítico é um ilusionista involuntário.
Esse estudo se constrói segundo uma
perspectiva política e humanista, para a
qual o leitor é o modelo do homem livre.
Sua crítica é "democrática": "Como a democracia, a crítica da crítica é dos regimes o menos ruim e, se não sabemos qual
é o melhor, não temos dúvida de que os
outros são piores. Não advoguei, pois, a
causa de uma teoria entre outras, nem a
do senso comum, mas a da crítica a todas
as teorias, inclusive ao senso comum".
Com respeito à obra, "crítica democrática" é experiência que procura compartilhá-la como um bem comum; é, também, perplexidade diante da "anarquia
discursiva" que reabre. Em suma: "A dobra crítica, o conhecimento das hipóteses
problemáticas que regem nossos procedimentos são vitais (...). A perplexidade é
a única moral literária".
O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum
Antoine Compagnon
Tradução: Cleonice Paes Barreto Mourão
Ed. da UFMG (Tel. 0/xx/31/499-4650)
305 págs., R$ 32,00
Olgária Matos é professora de filosofia na USP e autora, entre outros livros, de "O Iluminismo Visionário
-Walter Benjamin Leitor de Descartes e Kant" (Brasiliense).
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