São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mutações da linguagem

ARMANDO MORA DE OLIVEIRA

Um quarto de século vai separando a tradução brasileira da edição original deste livro. As conferências proferidas no primeiro semestre de 1972 tinham uma motivação ideológica que hoje talvez não direi passe despercebida -afinal, Ian Hacking amiúde insiste no fato de que está em polêmica com Jonatham Bennett, Alfred J. Ayer, Geoffrey Warnock etc.-, mas se ache atenuada, a menos que consigamos recuperar o "frisson" então reinante na França e seus curiosos reflexos nalgumas franjas universitárias inglesas.
Hacking, ao que tudo indica, achava insuportável a filosofia linguística dos hiperdiscípulos de John Austin, ou seja, dos habitantes daquela província oxfordiana que estudavam a linguagem pela linguagem, pretendendo até nela resolver problemas filosóficos por meio do esclarecimento dos vários usos de palavras-chave: o conhecido "o que você diria quando ...?". Pondo de lado a irritante questão de saber se existiu da parte de Austin essa pretensão -ou se ela constituía apenas prolegômenos a uma filosofia da linguagem futura-, a verdade é que, no livro seguinte ("Representing and Intervening", 1983), Hacking lamenta ter de passar a certidão de óbito da filosofia ou do método de Austin, completamente desertados, com exceção de alguns seguidores nos EUA e na Alemanha.
Portanto, a filosofia da linguagem ordinária, que teve o seu auge ("heyday") na década de 50 (embora sua influência acadêmica vá muito além), aos olhos de Hacking, não revela de forma alguma por que a linguagem é importante para a filosofia. Para mostrar por que é que importa, o trabalho de Hacking vai assumir um cariz histórico. Mas ele se distingue de uma história teleológica, como a de Ernst Cassirer, ou de um manual tão influente à época, como o de William Alston.
O que torna inusitado (ou mesmo único) o livro de Hacking na bibliografia da área é o fato de ele, por um instante, ter-se valido da "arqueologia das ciências humanas" de Michel Foucault e de seus modelos articulatórios dos saberes, a fim de "explicar" as mutações da "idéia" de linguagem do século 17 ao século 20.
A radicalidade está em ter transplantado, para o enfoque que a filosofia analítica faz de seu próprio passado (Locke, Russell, behaviorismo, Quine etc.), um modelo que lhe é exterior e cuja economia é governada por pressupostos aparentemente não-positivistas ou, como disseram de Foucault na época, de um "positivismo desesperado" (ou, se o leitor preferir, dum "modelo não-redutor"). Como Hacking diz de si próprio: "É possível que minha tese seja meramente parte da atual tendência de ruptura e revolução no recontar a história da ciência".
Essa invocação a Foucault, Kuhn e também, noutras ocasiões, a Althusser, Popper e Hegel produz uma sonoridade singular. Ouçamos Hacking mostrar que nos nossos dias, apesar das mudanças de "conteúdo" epistemológico, Strawson e Quine permanecem na "estrutura" inaugurada por Descartes e Locke: "... Um anacronismo compartilhado por Strawson, Quine e outros individualistas, no qual nosso estado de conhecimento é ainda mapeado sobre a posição filosófica da burguesia nascente do século 17. O conhecimento, outrora possuído por indivíduos, é agora propriedade de corporações".
Os estudos de caso que Hacking utiliza para provar o acerto de sua estratégia, envolvem autores que vão de Hobbes a Davidson. A tese é que os modos de acesso da filosofia ao "objeto" linguagem (a sua tematização) acham-se severamente limitados por certos "conceitos" da teoria filosófica de cada período. Assim, temos o termo "idéia" para o período clássico; a seguir, o onipresente "significado", postulado na teoria de Frege, do qual ainda é incerto saber se nos conseguiremos libertar; e a "sentença" que emerge no holismo de Quine, para ir explodir no anarquismo metodológico de Feyerabend, acompanhado de breves sugestões sobre a política de institucionalização dos discursos inspiradas pelo Foucault posterior a "As Palavras e as Coisas".
O argumento é convincente: os filósofos clássicos não podem ter uma teoria do significado puro, porque a linguagem pública, observável, não é essencial ao pensamento clássico, que está integralmente voltado para uma "linguagem de pensamento", composta de idéias.
Esse momento do saber é rearticulado, segundo Hacking, quando Frege precisa dar conta da transmissão de conteúdos semânticos de geração a geração: os "significados" são propostos para serem os "portadores" desse tesouro. O ceticismo ontológico de Quine a respeito dos significados, decorrente da demolição do dualismo analítico/sintético, leva-nos ao "heyday" das sentenças. Hacking interroga-se sobre o que explicaria a transição do império dos significados para a sentencialidade contemporânea e especula que o conhecimento mudou. A acumulação do saber conduz, por um processo "decapitado", a um novo estágio do esquema conceitual. Agora, são as sentenças e sua poderosa sintaxe que organizam e asseguram a transmissão do saber.
Gostaria de fazer duas observações. Em primeiro lugar, uma constatação. Tomando como referência a descrição de Hacking, pareceria que as "idéias" teriam desaparecido de nosso mundo. Mas a crer no vigoroso cognitivismo das duas últimas décadas, verificamos que a exigência dum nível representacional dá uma sobrevida permanente a alguma forma de cartesianismo (se o "internalismo" é filosoficamente sustentável a longo prazo, é evidentemente uma questão em aberto). O substituto para "significado" parece muito mais provável recair num termo como "conteúdo".
Em segundo lugar, um reparo. A palavra "idéia" surge no texto sem qualquer referência à sua origem. Assim, fica recalcada toda a problemática que a originou, aristotélica e tomista. Se fosse permitido a Hacking conceder espaço ao viés "intencionalista" que está presente numa parte do rosto da idéia cartesiana (justamente a sua parte ativa), a periodização por cortes seria substituída por uma história includente da ciência e da teoria filosófica. É interessante observar que Hacking cita um texto fundamental de Hobbes sobre a intencionalidade ("Elementos", 1.ii.5) e o famoso artigo de Elizabeth Anscombe sobre o mesmo tema, sem deles extrair um contraponto à sua análise.
Mas, dada a limitação assumida em seus estudos de caso, o que ele propõe, mesmo muitos anos depois, continua brilhante.



Por Que a Linguagem Interessa à Filosofia?
Ian Hacking
Tradução: Maria Elisa Marchini Sayeg
Editora Unesp (Tel. 0/xx/11/232-7171)
200 págs., R$ 22,00



Armando Mora de Oliveira é professor do departamento de filosofia da USP.

Texto Anterior: Sergio Cardoso: Para quem se governa?
Próximo Texto: Olgária Matos: A leitura democrática
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.