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Ao comparar os diversos regimes, Aristóteles é favorável à democracia
Para quem se governa?
SERGIO CARDOSO
Oito anos depois de sua publicação na França, reconhecido como
o melhor apoio pedagógico para a
introdução à leitura dos escritos
políticos de Aristóteles, está agora
disponível em português esse excelente "Aristóteles e a Política".
Sabemos que todos os trabalhos
de Francis Wolff apresentam os
melhores traços de uma severa e
rigorosa investigação acadêmica,
associada a uma enorme sensibilidade para o que há de vivo e
atual na reflexão dos clássicos
(desfazendo-se, por exemplo, no
caso deste Aristóteles, daquele
distanciamento "scholar" dos
bons manuais de língua inglesa).
Esses diversos ingredientes comparecem também nesse opúsculo,
no sentido próprio da palavra, e
de modo muito especial. Pois, nele, a destinação pedagógica do
texto não afasta a intenção de inovar no comentário e a tentativa de
agregar elementos novos às revisões mais recentes da leitura canônica da política de Aristóteles.
Numa importante coletânea
que organizou em 1993 ("Aristote
Politique", PUF), Pierre Aubenque, em sua introdução, chama a
atenção do leitor para o renovado
interesse da crítica pelos argumentos do filósofo em favor da
democracia. Ele mesmo, num dos
capítulos, procura mostrar que a
reabilitação desse regime político
promovida por Aristóteles não é
"uma tese circunstancial e isolada, mas está ligada a teses essenciais de sua filosofia". É essa convicção que encontra nos estudos
de Wolff um apoio decisivo, seja
na apresentação mais técnica de
sua agudíssima leitura do Livro 3�
da "Política", incluída na coletânea mencionada, seja na exposição mais desembaraçada e didática que apresenta na terceira parte
de seu próprio livro -o capítulo
intitulado "Em Busca do Justo Regime"-, em que retoma as linhas
principais de seu argumento relativo à eminência conferida por estes textos à democracia.
O governo misto
Comecemos por essa questão
crucial, já que a filosofia política
dos clássicos empenha-se quase
integralmente na "busca do melhor regime". Como se interpreta
habitualmente a posição de Aristóteles? Segundo a tradição crítica
mais estabelecida, ele retomaria, e
refinaria, a solução apresentada
nas "Leis" por Platão, aquela de
um regime constitucional governado por leis justas, concebidas
por um legislador imbuído de filosofia -o argumento do "governo misto", de tão longa fortuna
no pensamento político do Ocidente.
Mas será mesmo que os textos
políticos de Aristóteles resolvem-se nessa direção platônica, nitidamente aristocrática, que se alinham a esta solução destinada a
garantir um governo possível dos
melhores e, por ele, a difusão da
virtude na comunidade política?
Será mesmo possível, sem dificuldade, ver nas investigações do filósofo um dos elos da teoria da
balança constitucional dos poderes, do equilíbrio das forças sociais proporcionado pelo regime
misto? Não é tão certo. E é nesse
ponto que o trabalho que comentamos se revela imensamente esclarecedor.
Wolff procura desmontar a
equação básica da interpretação
"aristocrática", que pode ser sintetizada pelo breve comentário
que David Ross apõe ao final do
capítulo 9 do Livro 3� da "Política" -um dos textos de sustentação dessa leitura: "Se o Estado
existe em vista da realização de
nobres ações, o poder não deve ir
nem para os homens livres nem
para os bem nascidos nem para os
ricos, mas para os bons (virtuosos)". Ou seja, a repartição das
magistraturas que define um regime político seria justa se proporcional à virtude dos cidadãos, ou
ainda, como Wolff traduz mais
simplesmente, se os poderes fossem distribuídos "a cada um segundo sua virtude".
Operação ousada
Tal compreensão do texto pode
parecer quase evidente; no entanto, a partir dela, destacam-se inúmeras incongruências no nível da
argumentação e da articulação estrutural de todo o Livro 3�. Ora,
recusando as explicações tradicionais de teor genético para esses
desencontros doutrinários (possíveis hesitações do filósofo ou
justaposição editorial de escritos
provenientes de momentos diversos da obra), o comentador se
propõe o desafio de recuperar a
unidade estrutural desses textos.
Pretende mostrar "a coerência de
sua proposta, a consistência doutrinária de suas teses e a progressão necessária de sua argumentação", como anuncia num dos estudos anteriores a seu livro. E é essa operação ousada, conduzida
com extremo brio, que lhe permite abrir ou firmar perspectivas novas para a leitura da "Política".
O que Wolff nos faz compreender é que a investigação aristotélica relativa ao "melhor regime"
não se resolve no exame das controvérsias sobre os títulos diversos que podem ser alegados para
qualificar os cidadãos para o governo (virtude, riqueza ou liberdade); ela não pretende resolver o
problema da justiça (distributiva)
na repartição das magistraturas.
O que aí está em questão não é
isso. A justiça de um regime não
se define fundamentalmente pela
pergunta "quem governa?", mas
pela destinação do exercício do
poder: "Em vista de quem se governa?". Para Aristóteles, é justo,
no sentido absoluto do termo, todo governo que vise ao bem efetivo de todos, em vez daquele dos
próprios governantes. A busca do
bem viver comum qualifica qualquer governo (de um, alguns ou
de todos) como verdadeiro regime político.
Assim, compreendemos que a
investigação sobre "o melhor regime" -a investigação própria
da política como ciência prática
das constituições- aprecia não a
justiça dos regimes em sentido
absoluto (ou o fim pelo qual se determina a essência das comunidades políticas) nem as modalidades específicas de repartição das
magistraturas e poderes que os
define (as formas possíveis de ordenação desse gênero de comunidade), mas procura, entre as formas de constituição definidas,
aquela que revela uma aptidão
maior para realizar, de modo excelente, os seus fins: a busca da
justiça, o bem comum da cidade.
Em outras palavras: a definição
do "melhor regime" considera o
desempenho, a capacidade dos
diversos regimes para governar
bem. Trata-se, para Aristóteles,
nas palavras do autor, de saber
"que tipo de regime é o mais capaz de tomar as melhores decisões para a cidade".
O melhor regime
Enfim, como Wolff assinala
com sagacidade, Aristóteles nos
oferece uma apologia "aristocrática" da democracia: "Em vez de
pretender (como os próprios democratas) que é melhor que o povo governe, ele nos mostra que o
povo governa melhor". É o regime popular que apresenta os dispositivos constitucionais mais
adequados para abranger os interesses de toda a comunidade.
Uma breve alusão ao Livro 4�
-que Wolff, mantendo-se no registro das investigações fundamentais, não analisa- permite
ao leitor completar os contornos
do argumento aristotélico dessa
"defesa singular" da democracia a
título de melhor regime. Nele, ao
procurar ampliar (sobretudo pela
consideração da composição social positiva das cidades) suas
apreciações sobre o enraizamento
econômico-social e o funcionamento efetivo dos diferentes regimes, Aristóteles vem atestar que
não é propriamente a democracia
-nominal e formalmente o governo de todo o povo, mas, de fato, o da massa dos pobres- que
realiza a figura superior do governo de todos (o mais apto a governar para todos e a levar aos fins da
comunidade política), mas é o regime constitucional ("politeia"): o
governo do "justo meio" entre ricos e pobres, formalmente definido pela promoção da inclusão e
comunicação das partes fundamentais (irredutíveis) e antagônicas da cidade.
É esse regime misto, governo de
um "todos efetivo" (sic), socialmente determinado, que surge,
então, como "o melhor regime"
na perspectiva de seu desempenho ou de sua virtude política.
Essa reinterpretação da questão
do melhor regime ou a redefinição dos interesses próprios da investigação política no pensamento de Aristóteles (estabelecida
mediante um tratamento rigoroso dos textos) representa uma façanha considerável no domínio
da literatura crítica. E seu alcance
se ressalta quando nela se observa
a afinidade estreita de inspiração
deste trabalho com o de Aubenque, no seu já clássico "La Prudence chez Aristote" (A Prudência em Aristóteles). É a mesma
reavaliação das relações entre as
causas final, formal e eficiente
-e, ainda, das compreensões diversas sobre a dependência entre
meios e fins- que aqui está em
jogo, com o mesmo intuito de ressaltar a ênfase dada por Aristóteles aos meios ("técnicos") da
ação: no registro da ética, em Aubenque, no da política, em Wolff.
Essa acentuação da intenção
prática das investigações do filósofo permite não só apreciar melhor sua originalidade como também compreender os motivos do
interesse que continua a despertar
mesmo quando desmoronam, no
limiar da modernidade, seus postulados metafísicos, o finalismo
universal que sustentava a racionalidade do cosmos e da ordem
política.
Que o leitor não especializado
perdoe essa tentativa tão sumária
de assinalar o horizonte polêmico
e os engates críticos desse belo
trabalho. Pois ele poderá, sem
qualquer inconveniente, contornar essas questões em proveito do
apoio que esse livro lhe proporcionará para a leitura dos próprios textos de Aristóteles ou para
uma introdução estimulante e segura aos fundamentos do pensamento político grego, que encontram na obra do filósofo sua reflexão acabada (sobretudo os dois
primeiros capítulos de Wolff,
com seus preciosos excursos, são
nesse sentido um guia irretocável).
No entanto, lembre-se o leitor, é
por sua devolução ao contexto da
literatura crítica que melhor se
atestam o calibre e o valor dos estudos condensados nesse pequeno livro.
Aristóteles e a Política
Francis Wolff
Tradução: Thereza Stummer e
Lygia Watanabe
Discurso Editorial
(Tel. 0/ xx/11/814-5383)
156 págs., R$ 10,00
Sergio Cardoso é professor de filosofia política no departamento de filosofia da USP.
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