São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


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Ao comparar os diversos regimes, Aristóteles é favorável à democracia
Para quem se governa?

SERGIO CARDOSO

Oito anos depois de sua publicação na França, reconhecido como o melhor apoio pedagógico para a introdução à leitura dos escritos políticos de Aristóteles, está agora disponível em português esse excelente "Aristóteles e a Política".
Sabemos que todos os trabalhos de Francis Wolff apresentam os melhores traços de uma severa e rigorosa investigação acadêmica, associada a uma enorme sensibilidade para o que há de vivo e atual na reflexão dos clássicos (desfazendo-se, por exemplo, no caso deste Aristóteles, daquele distanciamento "scholar" dos bons manuais de língua inglesa). Esses diversos ingredientes comparecem também nesse opúsculo, no sentido próprio da palavra, e de modo muito especial. Pois, nele, a destinação pedagógica do texto não afasta a intenção de inovar no comentário e a tentativa de agregar elementos novos às revisões mais recentes da leitura canônica da política de Aristóteles.
Numa importante coletânea que organizou em 1993 ("Aristote Politique", PUF), Pierre Aubenque, em sua introdução, chama a atenção do leitor para o renovado interesse da crítica pelos argumentos do filósofo em favor da democracia. Ele mesmo, num dos capítulos, procura mostrar que a reabilitação desse regime político promovida por Aristóteles não é "uma tese circunstancial e isolada, mas está ligada a teses essenciais de sua filosofia". É essa convicção que encontra nos estudos de Wolff um apoio decisivo, seja na apresentação mais técnica de sua agudíssima leitura do Livro 3� da "Política", incluída na coletânea mencionada, seja na exposição mais desembaraçada e didática que apresenta na terceira parte de seu próprio livro -o capítulo intitulado "Em Busca do Justo Regime"-, em que retoma as linhas principais de seu argumento relativo à eminência conferida por estes textos à democracia.

O governo misto
Comecemos por essa questão crucial, já que a filosofia política dos clássicos empenha-se quase integralmente na "busca do melhor regime". Como se interpreta habitualmente a posição de Aristóteles? Segundo a tradição crítica mais estabelecida, ele retomaria, e refinaria, a solução apresentada nas "Leis" por Platão, aquela de um regime constitucional governado por leis justas, concebidas por um legislador imbuído de filosofia -o argumento do "governo misto", de tão longa fortuna no pensamento político do Ocidente.
Mas será mesmo que os textos políticos de Aristóteles resolvem-se nessa direção platônica, nitidamente aristocrática, que se alinham a esta solução destinada a garantir um governo possível dos melhores e, por ele, a difusão da virtude na comunidade política? Será mesmo possível, sem dificuldade, ver nas investigações do filósofo um dos elos da teoria da balança constitucional dos poderes, do equilíbrio das forças sociais proporcionado pelo regime misto? Não é tão certo. E é nesse ponto que o trabalho que comentamos se revela imensamente esclarecedor.
Wolff procura desmontar a equação básica da interpretação "aristocrática", que pode ser sintetizada pelo breve comentário que David Ross apõe ao final do capítulo 9 do Livro 3� da "Política" -um dos textos de sustentação dessa leitura: "Se o Estado existe em vista da realização de nobres ações, o poder não deve ir nem para os homens livres nem para os bem nascidos nem para os ricos, mas para os bons (virtuosos)". Ou seja, a repartição das magistraturas que define um regime político seria justa se proporcional à virtude dos cidadãos, ou ainda, como Wolff traduz mais simplesmente, se os poderes fossem distribuídos "a cada um segundo sua virtude".

Operação ousada
Tal compreensão do texto pode parecer quase evidente; no entanto, a partir dela, destacam-se inúmeras incongruências no nível da argumentação e da articulação estrutural de todo o Livro 3�. Ora, recusando as explicações tradicionais de teor genético para esses desencontros doutrinários (possíveis hesitações do filósofo ou justaposição editorial de escritos provenientes de momentos diversos da obra), o comentador se propõe o desafio de recuperar a unidade estrutural desses textos. Pretende mostrar "a coerência de sua proposta, a consistência doutrinária de suas teses e a progressão necessária de sua argumentação", como anuncia num dos estudos anteriores a seu livro. E é essa operação ousada, conduzida com extremo brio, que lhe permite abrir ou firmar perspectivas novas para a leitura da "Política".
O que Wolff nos faz compreender é que a investigação aristotélica relativa ao "melhor regime" não se resolve no exame das controvérsias sobre os títulos diversos que podem ser alegados para qualificar os cidadãos para o governo (virtude, riqueza ou liberdade); ela não pretende resolver o problema da justiça (distributiva) na repartição das magistraturas.
O que aí está em questão não é isso. A justiça de um regime não se define fundamentalmente pela pergunta "quem governa?", mas pela destinação do exercício do poder: "Em vista de quem se governa?". Para Aristóteles, é justo, no sentido absoluto do termo, todo governo que vise ao bem efetivo de todos, em vez daquele dos próprios governantes. A busca do bem viver comum qualifica qualquer governo (de um, alguns ou de todos) como verdadeiro regime político.
Assim, compreendemos que a investigação sobre "o melhor regime" -a investigação própria da política como ciência prática das constituições- aprecia não a justiça dos regimes em sentido absoluto (ou o fim pelo qual se determina a essência das comunidades políticas) nem as modalidades específicas de repartição das magistraturas e poderes que os define (as formas possíveis de ordenação desse gênero de comunidade), mas procura, entre as formas de constituição definidas, aquela que revela uma aptidão maior para realizar, de modo excelente, os seus fins: a busca da justiça, o bem comum da cidade.
Em outras palavras: a definição do "melhor regime" considera o desempenho, a capacidade dos diversos regimes para governar bem. Trata-se, para Aristóteles, nas palavras do autor, de saber "que tipo de regime é o mais capaz de tomar as melhores decisões para a cidade".

O melhor regime
Enfim, como Wolff assinala com sagacidade, Aristóteles nos oferece uma apologia "aristocrática" da democracia: "Em vez de pretender (como os próprios democratas) que é melhor que o povo governe, ele nos mostra que o povo governa melhor". É o regime popular que apresenta os dispositivos constitucionais mais adequados para abranger os interesses de toda a comunidade.
Uma breve alusão ao Livro 4� -que Wolff, mantendo-se no registro das investigações fundamentais, não analisa- permite ao leitor completar os contornos do argumento aristotélico dessa "defesa singular" da democracia a título de melhor regime. Nele, ao procurar ampliar (sobretudo pela consideração da composição social positiva das cidades) suas apreciações sobre o enraizamento econômico-social e o funcionamento efetivo dos diferentes regimes, Aristóteles vem atestar que não é propriamente a democracia -nominal e formalmente o governo de todo o povo, mas, de fato, o da massa dos pobres- que realiza a figura superior do governo de todos (o mais apto a governar para todos e a levar aos fins da comunidade política), mas é o regime constitucional ("politeia"): o governo do "justo meio" entre ricos e pobres, formalmente definido pela promoção da inclusão e comunicação das partes fundamentais (irredutíveis) e antagônicas da cidade.
É esse regime misto, governo de um "todos efetivo" (sic), socialmente determinado, que surge, então, como "o melhor regime" na perspectiva de seu desempenho ou de sua virtude política.
Essa reinterpretação da questão do melhor regime ou a redefinição dos interesses próprios da investigação política no pensamento de Aristóteles (estabelecida mediante um tratamento rigoroso dos textos) representa uma façanha considerável no domínio da literatura crítica. E seu alcance se ressalta quando nela se observa a afinidade estreita de inspiração deste trabalho com o de Aubenque, no seu já clássico "La Prudence chez Aristote" (A Prudência em Aristóteles). É a mesma reavaliação das relações entre as causas final, formal e eficiente -e, ainda, das compreensões diversas sobre a dependência entre meios e fins- que aqui está em jogo, com o mesmo intuito de ressaltar a ênfase dada por Aristóteles aos meios ("técnicos") da ação: no registro da ética, em Aubenque, no da política, em Wolff.
Essa acentuação da intenção prática das investigações do filósofo permite não só apreciar melhor sua originalidade como também compreender os motivos do interesse que continua a despertar mesmo quando desmoronam, no limiar da modernidade, seus postulados metafísicos, o finalismo universal que sustentava a racionalidade do cosmos e da ordem política.
Que o leitor não especializado perdoe essa tentativa tão sumária de assinalar o horizonte polêmico e os engates críticos desse belo trabalho. Pois ele poderá, sem qualquer inconveniente, contornar essas questões em proveito do apoio que esse livro lhe proporcionará para a leitura dos próprios textos de Aristóteles ou para uma introdução estimulante e segura aos fundamentos do pensamento político grego, que encontram na obra do filósofo sua reflexão acabada (sobretudo os dois primeiros capítulos de Wolff, com seus preciosos excursos, são nesse sentido um guia irretocável).
No entanto, lembre-se o leitor, é por sua devolução ao contexto da literatura crítica que melhor se atestam o calibre e o valor dos estudos condensados nesse pequeno livro.



Aristóteles e a Política
Francis Wolff
Tradução: Thereza Stummer e Lygia Watanabe
Discurso Editorial
(Tel. 0/ xx/11/814-5383)
156 págs., R$ 10,00



Sergio Cardoso é professor de filosofia política no departamento de filosofia da USP.


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