São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


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Obras analisam duas vertentes do teatro político
O palco e a rua

INÁ CAMARGO COSTA

O livro de Rosangela Patriota é um convite para rever os diagnósticos sobre a peça "Rasga Coração", de Vianinha. Para tanto, procede a um minucioso estudo sobre o comportamento da crítica jornalística que promoveu a peça a símbolo da luta contra a censura -de 1975, quando foi premiada pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT) e imediatamente proibida, até sua liberação e estréia em Curitiba, em 1979.
Uma espécie de "movimento" em favor da liberação da peça foi criado entre os críticos e a "classe" teatral: leituras dramáticas bem-sucedidas ou impedidas pela repressão foram realizadas, sempre contando com ampla cobertura jornalística, e críticos como Yan Michalski seguidamente voltavam ao assunto, explorando o "paradoxo" de um mesmo governo premiar e censurar uma das obras-primas da dramaturgia nacional. Forjou-se então uma espécie de unanimidade em torno da peça e do dramaturgo, que a autora explica pela identidade de propósitos entre este e seus críticos (a palavra-de-ordem era "resistência democrática") e se dispõe a enfrentar.

O paradoxo da censura
Entre outros motivos de espanto, encontra-se a declaração, por certo motivada pelo entusiasmo da hora, de que Vianinha é um dos "fundadores do teatro nacional". Fica, por outro lado, sugerido que uma das explicações para o fenômeno é o fato de a imprensa ter-se beneficiado, antes dos demais setores, da chamada "distensão" do general Geisel. A autora chega a lembrar que, entre os beneficiados, encontram-se órgãos que inicialmente apoiaram o golpe militar, quando não o reclamaram explicitamente, e aponta outro "paradoxo", este da própria censura: a peça ficou proibida para encenação, leitura dramática ou qualquer outra forma de divulgação pública, mas a imprensa não foi proibida de dar notícias a seu respeito.
Para desvendar estes e outros "mistérios", reconstitui a trajetória de Vianinha, desde a sua participação no Teatro Paulista do Estudante (TPE) até sua morte, em 1974, quando concluiu a redação de "Rasga Coração", até hoje considerada sua obra-prima -trajetória dividida em duas etapas. Primeiro, são brevemente examinadas as peças que vão de "Chapetuba Futebol Clube" (encenada pelo Arena) até "Papa Highirte" (que também foi censurada, mas não recebeu a mesma atenção e, depois de liberada, foi produzida em 1979 por Sérgio Britto). O exame leva sempre em consideração os problemas da ordem do dia, aos quais Vianinha está sempre atento e aos quais sempre responde segundo as diretrizes do então PCB.
Na segunda etapa, temos uma análise de "Rasga Coração", da qual emergem as razões partidárias para a crítica à contracultura (identificada nos documentos do partido como "irracionalismo"), mas também as razões do dramaturgo para, mesmo reafirmando sua fidelidade, alertar a organização para o surgimento do "novo". O editor Enio Silveira teria informado que o PCB não gostara da peça. Deve ter sido pelos "toques" que Vianinha lhe deu ao longo do texto.
Como a autora insiste, o problema é retomar a discussão desta peça e do conjunto da obra de Vianinha à luz de suas determinações históricas. O livro avança significativamente nas informações necessárias para restabelecer a cronologia, mas fica devendo o exame do peso de uma das determinações, o golpe de 1964, que a própria exposição definiu como um marco divisório no conjunto da obra. Essa dívida fica mais evidente à luz das questões formuladas pelos autores de "Teatro de Rua".
Em poucas palavras, a partir da peça "A Mais-Valia vai Acabar, Seu Edgar" e durante a experiência do Centro Popular de Cultura, Vianinha participou do momento mais radical do teatro político brasileiro e uma das marcas dessa radicalidade foi justamente a luta pelo espaço público, isto é, pelo direito de fazer teatro de agitação e propaganda política nas ruas. O golpe de 64 forçou o retorno aos palcos e aos espaços fechados; este retorno foi definido pelo PCB como "recuo organizado", o que virou tema de piada (de humor negro, por certo) entre os veteranos do Centro Popular de Cultura (CPC) -literalmente abandonados pelas direções partidárias.

Teatro de rua
A exposição de Cruciani e Falletti começa por duas referências sobre as quais não há necessidade de maior reflexão: lembram que a história do teatro de rua se perde na noite dos tempos, na forma de triunfos, procissões, desfiles e seu cortejo de adereços, alegorias e instrumentos musicais, e que a sua retomada, no século 19, deveu-se a decisões políticas (o movimento socialista, por exemplo) e à crítica da mercantilização explícita do teatro como matriz do "show business".
No século 20, o teatro de rua se divide em duas linhas básicas, em luta permanente até o fim da Segunda Guerra Mundial, mas que, sobretudo depois dos anos 60, passaram a cultivar um produtivo intercâmbio: a litúrgico-religioso-ritualística, representada por Jacques Copeau e seus descendentes (como Jean Vilar na França), e a de inspiração marxista ou socialista, representada pelo teatro de agitação e propaganda inventado pelos artistas soviéticos logo depois de 1917 e desenvolvido principalmente na Alemanha da República de Weimar.
Assumindo formalmente uma das mais importantes orientações de Eisenstein para o movimento chamado "Proletcult", o primeiro ensaio do livro é uma montagem da qual resulta um dos mais completos panoramas da história do teatro de rua desde meados do século 19. Passando a palavra aos protagonistas desse processo, que ainda está longe de se poder considerar conhecido entre nós, os autores cedem o palco às mais importantes polêmicas entre a linha litúrgica e a política, assim como entre os militantes da linha política (por exemplo: os seguidores de Romain Rolland contra os de Piscator, como Béla Balàzs).
Esse panorama é acompanhado de uma reflexão crítica que tem como ponto de partida a convicção de que o teatro restrito ao palco italiano -a forma mais explícita do teatro-mercadoria- corresponde a um período histórico de pouco mais de 200 anos, que precisa ser ultrapassado, não só na prática, como tem acontecido, mas sobretudo nos planos da reflexão e da história, que habitualmente não ultrapassam as experiências e a dramaturgia restritas aos ambientes fechados, o que é o mesmo que dizer restritas à forma-mercadoria.
Como ilustração dessa necessidade, dois ensaios -um sobre experiências italianas e outro, de Fernando Peixoto, sobre experiências brasileiras, a partir dos anos 70- dão notícias do que está em jogo em cada "ocupação das ruas" e dos desafios que se colocam para os atores e os próprios grupos. Para estes, a própria sobrevivência em sociedades que não chegam a lhes reconhecer o direito à existência (como demonstrou a polícia em Porto Alegre, em 1994) e, para os atores, a necessidade de um preparo técnico inteiramente diverso daquele ensinado nas escolas. Em suas propostas de "antropologia teatral", Eugenio Barba terá sido um dos maiores formuladores desses problemas.
Comparativamente, o CPC no Brasil esteve muito longe das experiências européias, mais organizadas e com mais tempo de atuação, contando com a adesão de milhares de militantes, politicamente organizados ou não, para não falar em apoio da própria militância partidária. Mas, ao participar ativamente dessa organização, Vianinha esteve nos limites possíveis do nosso teatro de rua nos anos 60. O golpe de 64 obrigou-o a voltar para o palco italiano. Este retrocesso há de ter deixado marcas profundas em sua dramaturgia, não só em peças como "Moço em Estado de Sítio", mas ainda em "Rasga Coração". No mínimo, porque esta dificilmente poderá ser apresentada na rua...



Vianinha - Um Dramaturgo no Coração de Seu Tempo
Rosangela Patriota Hucitec (Tel. 0/xx/11/543-0653) 232 págs., R$ 28,00

Teatro de Rua
Fabrizio Cruciani e Clelia Falletti Tradução Roberta Baarni Hucitec 168 págs, R$ 18,00



Iná Camargo Costa é professora no departamento de teoria literária e literatura comparada na USP e autora de "Sinta o Drama" (Vozes).


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