São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


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Autobiografia de Tzvetan Todorov faz uma crônica do século 20
O século das catástrofes

MARCIO SELIGMANN

A importância do adormecer e do despertar nos relatos (auto) biográficos é evidente para qualquer leitor desse gênero de literatura. Se o relato de vida pode ser visto como uma tentativa do autor (e do leitor) de mergulhar na "eternidade" do tempo, procurando, desse modo, estancar o seu fluxo, é porque a morte representa sempre um pano de fundo imprescindível ao relato (auto)biográfico: e o adormecer e o despertar funcionam nessas obras justamente como encenações do nascimento e da morte. Logo, não é de modo algum casual que Todorov inicie esse livro com a frase: "Durante muito tempo, acordei aos sobressaltos". Proust, na primeira linha de sua "Recherche", optara pelo adormecer: "Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo".
A distância que existe entre o "acordar aos sobressaltos" e o "deitar-se cedo" é a mesma que separa o projeto proustiano de construção de um "eu", numa modernidade marcada pela onipresença dos choques, e a tentativa de Todorov de articular a sua vida à "crônica do século 20", para ele marcado justamente pelo esfacelamento da idéia de "indivíduo autônomo".

Autobiografia e memória
Em "O Homem Desenraizado", a personagem central não é a "vida" de seu autor, mas sim as desventuras do indivíduo "iluminista" e "humanista". Em vez de autobiografia, talvez fosse mais certo falar de uma modalidade da memorialística que, deixando as notas de rodapé de lado, procura ser a mais factual possível, sem no entanto descartar a narrativa em primeira pessoa e nem a bibliografia.
O século 20 já foi caracterizado por muitos como o século das catástrofes. Não é outro o tema desse brilhante livro. Todorov faz uma leitura crítica dos três momentos-chave de sua vida, marcados também por três diferentes países: a Bulgária (onde ele nasceu em 1939 e viveu até 1963), a França (onde vive desde seu exílio) e os EUA (país aonde vai trabalhar anualmente já há quase três décadas, na qualidade de professor visitante). Cada um desses locais corresponde a uma parte do livro. Cada uma delas e cada país merece uma atenção particular: mas os fatos são sempre organizados do ponto de vista da crítica social. Ao longo de todo o livro, o local geográfico a partir do qual a história se articula é Paris ("Em Paris" é o título da pequena "Conclusão"). Diferentemente da autobiografia, não ocorre aqui a narração da "formação" do protagonista ao longo desse livro; antes, ele permanece constante do início ao fim -como é costume no discurso acadêmico-, e esse ponto de vista "parisiense" garante tanto a onisciência do autor quanto a sua "distância crítica" (mesmo quando o tema é a França) e ainda a sua defesa do "ponto de vista do universal".
Na condição de uma testemunha do regime totalitário, Todorov faz uma análise minuciosa dos mecanismos que mantinham esse regime: do naufrágio do sujeito "autônomo", da patologização do dissidente, da esquizofrenia social das pessoas obrigadas a reprimir toda manifestação crítica, da quebra das fronteiras entre o privado e o público e, muito pior, entre os carrascos e as vítimas. O autor deixa claro que a quintessência do totalitarismo é constituída pelos campos de concentração: nada funcionaria nessas sociedades sem a política do terror. (Pergunto-me apenas se de fato "não há diferença radical entre os campos nazistas e os campos soviéticos, apesar das evidentes diferenças de organização: sem câmara de gás aqui, sem reeducação política lá etc.")
Na condição de teórico da literatura, Todorov não se poderia furtar à auto-referência no seu relato: daí a memória, nas suas diversas modalidades, ser objeto de uma profunda reflexão. Na linha do seu livro anterior, "Face à l'Extrême", ele analisa a complexa tarefa imposta à memória da barbárie totalitária, isso em termos tanto individuais (do trauma e da impossível "cura"), quanto também sociais e mesmo jurídicos. O sistema totalitário tem como uma de suas características -correlata ao extermínio do indivíduo autônomo, responsável pelas suas ações- a pulverização da culpa. E mais: todos agem nessas sociedades "dentro da lei". Eis o porquê da importância no livro da questão dos crimes contra a humanidade, cuja conceituação é marcada justamente pela visão de "humanidade" pela qual Todorov se bate, a saber, pelo universalismo em oposição ao hiper-historicismo relativista que hoje impera, e não só nas academias.
Também a parte reservada à França trata da memória e da luta pelo indivíduo autônomo: do modo não de todo isento de a França lidar com o seu passado colaboracionista durante o nazismo; de como e por que os intelectuais franceses apoiavam os regimes totalitários comunistas; da censura e das suas aporias (necessidade de empregá-la, como no caso dos "Protocolos dos Sábios do Sião", uma farsa que quer passar-se por realidade, e condenação da sua aplicação no caso dos "Versos Satânicos", de Rushdie, que trabalha, de modo responsável, na chave da ficção); e, finalmente, do "novo racismo" francês que se dissimula muitas vezes sob um discurso multiculturalista.
A terceira parte do livro, dedicada aos EUA, desdobra essa crítica à pseudo "political correctness" que traz no seu bojo não apenas a onda de vitimização (a "nova vontade de impotência") e de aquartelamento em grupos, mas também os fantasmas do "sexismo" e do "racismo" que ela quer exorcizar. As inúmeras afirmações da continuidade entre a filosofia nietzschiana em todas as suas modalidades -de Heidegger a Paul de Man, passando por Blanchot, Jameson, Culler e pelo filósofo pragmático Stanley Fish- e o totalitarismo podem parecer simplistas, mas convidam para um debate sobre o comprometimento "de direita" de muitos eminentes intelectuais deste século. Todorov não trata apenas do homem desenraizado -aculturado -, mas sobretudo do homem "dépaysé", como se lê no título original, ou seja, sem rumo, à deriva diante de um modelo de homem que parece ter naufragado, mas que o autor -nesse ponto solidário a Habermas- tenta resgatar.



O Homem Desenraizado
Tzvetan Todorov Tradução: Christina Cabo Record (Tel. 0/xx/21/585-2047) 252 págs., R$ 20,00



Márcio Seligmann-Silva é autor de "Ler o Livro do Mundo. Walter Benjamin - Romantismo e Crítica Poética" (Iluminuras) e organizador de "Leituras de Walter Benjamin" (Anna Blume).


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