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Autobiografia de Tzvetan Todorov faz uma crônica do século 20
O século das catástrofes
MARCIO SELIGMANN
A importância do adormecer e
do despertar nos relatos (auto)
biográficos é evidente para qualquer leitor desse gênero de literatura. Se o relato de vida pode ser
visto como uma tentativa do autor (e do leitor) de mergulhar na
"eternidade" do tempo, procurando, desse modo, estancar o seu
fluxo, é porque a morte representa sempre um pano de fundo imprescindível ao relato (auto)biográfico: e o adormecer e o despertar funcionam nessas obras justamente como encenações do nascimento e da morte. Logo, não é
de modo algum casual que Todorov inicie esse livro com a frase:
"Durante muito tempo, acordei
aos sobressaltos". Proust, na primeira linha de sua "Recherche",
optara pelo adormecer: "Durante
muito tempo, costumava deitar-me cedo".
A distância que existe entre o
"acordar aos sobressaltos" e o
"deitar-se cedo" é a mesma que
separa o projeto proustiano de
construção de um "eu", numa
modernidade marcada pela onipresença dos choques, e a tentativa de Todorov de articular a sua
vida à "crônica do século 20", para ele marcado justamente pelo
esfacelamento da idéia de "indivíduo autônomo".
Autobiografia e memória
Em "O Homem Desenraizado",
a personagem central não é a "vida" de seu autor, mas sim as desventuras do indivíduo "iluminista" e "humanista". Em vez de autobiografia, talvez fosse mais certo falar de uma modalidade da
memorialística que, deixando as
notas de rodapé de lado, procura
ser a mais factual possível, sem no
entanto descartar a narrativa em
primeira pessoa e nem a bibliografia.
O século 20 já foi caracterizado
por muitos como o século das catástrofes. Não é outro o tema desse brilhante livro. Todorov faz
uma leitura crítica dos três momentos-chave de sua vida, marcados também por três diferentes
países: a Bulgária (onde ele nasceu em 1939 e viveu até 1963), a
França (onde vive desde seu exílio) e os EUA (país aonde vai trabalhar anualmente já há quase
três décadas, na qualidade de professor visitante). Cada um desses
locais corresponde a uma parte
do livro. Cada uma delas e cada
país merece uma atenção particular: mas os fatos são sempre organizados do ponto de vista da crítica social. Ao longo de todo o livro,
o local geográfico a partir do qual
a história se articula é Paris ("Em
Paris" é o título da pequena "Conclusão"). Diferentemente da autobiografia, não ocorre aqui a narração da "formação" do protagonista ao longo desse livro; antes,
ele permanece constante do início
ao fim -como é costume no discurso acadêmico-, e esse ponto
de vista "parisiense" garante tanto a onisciência do autor quanto a
sua "distância crítica" (mesmo
quando o tema é a França) e ainda
a sua defesa do "ponto de vista do
universal".
Na condição de uma testemunha do regime totalitário, Todorov faz uma análise minuciosa
dos mecanismos que mantinham
esse regime: do naufrágio do sujeito "autônomo", da patologização do dissidente, da esquizofrenia social das pessoas obrigadas a
reprimir toda manifestação crítica, da quebra das fronteiras entre
o privado e o público e, muito
pior, entre os carrascos e as vítimas. O autor deixa claro que a
quintessência do totalitarismo é
constituída pelos campos de concentração: nada funcionaria nessas sociedades sem a política do
terror. (Pergunto-me apenas se de
fato "não há diferença radical entre os campos nazistas e os campos soviéticos, apesar das evidentes diferenças de organização:
sem câmara de gás aqui, sem reeducação política lá etc.")
Na condição de teórico da literatura, Todorov não se poderia
furtar à auto-referência no seu relato: daí a memória, nas suas diversas modalidades, ser objeto de
uma profunda reflexão. Na linha
do seu livro anterior, "Face à l'Extrême", ele analisa a complexa tarefa imposta à memória da barbárie totalitária, isso em termos tanto individuais (do trauma e da impossível "cura"), quanto também
sociais e mesmo jurídicos. O sistema totalitário tem como uma de
suas características -correlata ao
extermínio do indivíduo autônomo, responsável pelas suas
ações- a pulverização da culpa.
E mais: todos agem nessas sociedades "dentro da lei". Eis o porquê da importância no livro da
questão dos crimes contra a humanidade, cuja conceituação é
marcada justamente pela visão de
"humanidade" pela qual Todorov
se bate, a saber, pelo universalismo em oposição ao hiper-historicismo relativista que hoje impera,
e não só nas academias.
Também a parte reservada à
França trata da memória e da luta
pelo indivíduo autônomo: do
modo não de todo isento de a
França lidar com o seu passado
colaboracionista durante o nazismo; de como e por que os intelectuais franceses apoiavam os regimes totalitários comunistas; da
censura e das suas aporias (necessidade de empregá-la, como no
caso dos "Protocolos dos Sábios
do Sião", uma farsa que quer passar-se por realidade, e condenação da sua aplicação no caso dos
"Versos Satânicos", de Rushdie,
que trabalha, de modo responsável, na chave da ficção); e, finalmente, do "novo racismo" francês que se dissimula muitas vezes
sob um discurso multiculturalista.
A terceira parte do livro, dedicada aos EUA, desdobra essa crítica
à pseudo "political correctness"
que traz no seu bojo não apenas a
onda de vitimização (a "nova
vontade de impotência") e de
aquartelamento em grupos, mas
também os fantasmas do "sexismo" e do "racismo" que ela quer
exorcizar. As inúmeras afirmações da continuidade entre a filosofia nietzschiana em todas as
suas modalidades -de Heidegger a Paul de Man, passando por
Blanchot, Jameson, Culler e pelo
filósofo pragmático Stanley
Fish- e o totalitarismo podem
parecer simplistas, mas convidam
para um debate sobre o comprometimento "de direita" de muitos
eminentes intelectuais deste século. Todorov não trata apenas do
homem desenraizado -aculturado -, mas sobretudo do homem "dépaysé", como se lê no título original, ou seja, sem rumo, à
deriva diante de um modelo de
homem que parece ter naufragado, mas que o autor -nesse ponto solidário a Habermas- tenta
resgatar.
O Homem Desenraizado
Tzvetan Todorov
Tradução: Christina Cabo
Record (Tel. 0/xx/21/585-2047)
252 págs., R$ 20,00
Márcio Seligmann-Silva é autor de "Ler o
Livro do Mundo. Walter Benjamin - Romantismo e Crítica Poética" (Iluminuras) e organizador de "Leituras de Walter Benjamin"
(Anna Blume).
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