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Sexo e clichê
RUBENS FIGUEIREDO
A norma segundo a qual o escritor deve responder ao seu
tempo costuma abrigar algum tipo de argumento em favor da
narrativa realista: o livro mexe muito a boca, mas é dublado
pelas vozes da sua época. Bem distinto pode ser o caminho da
ficção que faz valer sua autoridade, alheia ao seu tempo, ou
contra ele, a ficção que o desafia com uma voz própria e que, se
trava algum diálogo, há de ser nos seus próprios termos.
O romance "Sexo", de André Sant'Anna, representa uma
conquista nesse diálogo entrecortado da literatura com o seu
tempo, bem como uma façanha na tradição do realismo. Pois
não só traz para suas páginas as vozes contemporâneas em estado bruto, com sua indigência vocabular e sua máquina de
clichês, como também suprime até a raiz todos os sinais de esmero artístico, varre de suas linhas os cuidados de estilo, que
normalmente valem como o emblema e o salvo-conduto da literatura. Ou seja, na relação com o seu tempo, "Sexo" simula
uma isenção completa da arte literária no interesse da expressão mais direta possível das vozes da sua época.
Simula, eu sublinho, pois a engenhosa intervenção do autor,
fonte da potência crítica de seu romance, consiste em fingir
aceitar com gosto a delícia de habitar as fórmulas prontas, as
frases feitas, os lugares-comuns, o estupor mental povoado de
slogans que vem a ser o cotidiano de seus personagens. Assim,
a leitura exacerba a estupidez, a cegueira, a miséria do espírito
sem horizontes, em desdobramentos de contundência cada
vez maior.
E esse efeito se reforça graças ao rigor a que André Sant'Anna
submeteu a composição do romance. O princípio parece ser o
do estereótipo: mais de uma vez, os personagens são definidos
segundo pesquisas de marketing que esculpem um perfil em
termos de idade, sexo, classe, escolaridade e consumo. São todos iguais, conforme a sua categoria: comem, vestem, falam e
pensam as mesmas coisas. O personagem-tipo da tradição
realista ganha assim sua expressão mais cabal -um ridículo e
uma monstruosidade reproduzidos em série.
O princípio da fabricação em série também aperta os parafusos da esteira rolante dos parágrafos de André Sant'Anna. Os
nomes das personagens não são substantivos próprios, mas
meras circunstâncias que aderem a cada um deles de forma
inexorável. Encontramos assim a "Vendedora De Roupas Jovens Da Butique De Roupas Jovens", ou o "Adolescente Cabeludo, Que Ouvia Sepultura Em Seu Walk-Man" etc. Ao contrário do que pode parecer, o efeito cômico desse mecanismo de
nomeação é devastador. A repetição implacável, sempre por
extenso, do estereótipo em que cada personagem fica aprisionado desde sua irrupção na história ajuda a romper, barreira
após barreira, as aparências e as ilusões com que todos gostariam de ser vistos.
Repetições exacerbadas
Como "Sexo" é construído segundo um princípio combinatório rigoroso, é verdade que alguns trechos parecerão previsíveis ao leitor, tão logo ele depreenda essas regras bastante
óbvias. O surpreendente é que, se forçarmos nosso olho a percorrer as linhas que já prevemos como serão, a experiência das
repetições exacerbadas, impelidas a extremos de autênticos
abismos, acabará por fazer eclodir em nós a força tanto do riso
quanto da genuína intuição crítica da literatura.
Já o tema central do romance -anunciado no título- afirma o princípio da estereotipia. O sexo é tratado como um dos
mais colossais clichês de nossa época. Em seu primeiro livro, o
excelente "Amor" (edições Dubolso, 1998), André Sant'Anna
usou uma epígrafe de Ernest Becker. Para este pensador americano, o erro de Freud consistiu em atribuir a matriz da doença mental e das formas da nossa civilização à negação do sexo.
Segundo Becker, a raiz de tudo isso estaria, na verdade, na negação da morte, na resistência em admitir nossa própria mortalidade. Com aquele empurrão psicanalítico, o sexo se tornou
uma formidável sementeira de frases feitas, de certezas pré-fabricadas, de dogmas consumíveis. Pois é também este sexo
que encontramos em "Sexo".
Entretanto, no correr das páginas, o romance nos põe diante
de um panorama cada vez mais vasto -até, enfim, depararmos um mundo cujo sistema está em entropia. Quer dizer, um
mundo que não dispõe mais de meios para se corrigir. Cada
reação resulta em novo equívoco. Tudo nasce para se converter em lugar-comum, palavra morta. O cômico do romance de
André Sant'Anna, sem prejuízo do que de fato tem de hilariante, é mais corrosão do que diversão.
"Sexo" é para estômagos fortes. Muitas vezes mete medo.
Não sei prever como será lido um livro de feição tão experimental, de aparência por vezes até tosca e que parece se regalar
em não se parecer com nada que exista em nossa literatura.
Mas estou seguro de que nenhum leitor poderá escapar do
abalo e da força indagadora de uma leitura ao mesmo tempo
tão simples e tão exigente.
Sexo
André Sant'Anna
Editora Sette Letras (Tel. 0/xx/21/540-0037)
128 págs., R$ 18,00
Rubens Figueiredo é escritor e tradutor, autor de "As Palavras Secretas" (Companhia das Letras).
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