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Maria Victoria Benevides analisa tese premiada no Rio que defende o papel histórico de Leonel Brizola
Anatomia do brizolismo
MARIA VICTORIA BENEVIDES
Abro o livro e custo a crer, mas está lá,
na introdução: "Do brizolismo utópico
ao brizolismo científico". Título sério,
sem brincadeira. A curiosidade aumenta;
de que se trata, afinal? De uma leitura
-levemente desconfiada- penso ter
entendido o que motivou essa "boutade",
logo nas primeiras páginas, como se fosse
uma advertência. O autor é brizolista. O
autor é também um intelectual que escreve sua tese de doutorado. As duas coisas
juntas só poderiam dar no que deu: um
texto denso e sofisticado, porém recortado no molde da paixão. João Sento-Sé
não a esconde, antes reveste-a de cores
acadêmicas e escolhe o tom pessoal para
justificá-la, pois foi "seduzido pelo objeto" da pesquisa.
A sedução tem seu preço: um leitor distante ficaria com a certeza de que Leonel
Brizola foi não apenas nosso herói civilizador, como o maior de todos, tocado pela graça do carisma e pelas virtudes da coragem e da coerência, embora vítima da
incompreensão, do isolamento e da perseguição. Essa avaliação gloriosa não impede o interesse pelo livro, bem escrito e
sempre instigante, além de outras qualidades que o fizeram merecer o prêmio de
melhor tese de ciência política, outorgado pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).
De meu conhecimento é um trabalho
original (com a devida vênia do pioneiro
Moniz Bandeira), uma verdadeira anatomia do fenômeno do brizolismo e do que
chama de "persona publica" de Brizola.
Vale a pena procurar entender as mortes
anunciadas e as surpreendentes ressurreições desse que permanecerá em nossa
história, sem dúvida e sem ufanismos,
como um grande líder de massas e um
autêntico nacionalista.
Tradição e modernidade
Por brizolismo o autor não entende um
movimento político (como o getulismo
ou o udenismo, por exemplo), mas o
conjunto dos discursos a favor e contra a
liderança de Brizola, desde a volta do exílio, em 1979, até hoje. Daí o interesse em
destacar não apenas as teses brizolistas e
sua encampação, como também as críticas impenitentes, pela esquerda e pela direita.
Assim temos, do lado do discurso favorável, uma análise do estadista que concilia a tradição e a modernidade. Essa conciliação é definida como o arranjo brizolista entre nacionalismo, trabalhismo e
social-democracia européia, forma privilegiada da inserção do novo PTB, depois
PDT, na cena política da abertura.
Do lado do discurso contrário, temos a
crítica intelectual ao populismo, ao carisma de demagogo e ao descaso pela democracia representativa, assim como
uma avaliação bastante negativa do nacionalismo, visto como mascaramento
dos conflitos na sociedade capitalista. A
crítica rasteira -dos militares e das "elites" predatórias- denuncia, no líder
gaúcho, o caudilho, o arrivista, o subversivo incendiário e manipulador das massas ordeiras e trabalhadoras ("com Brizola os morros vão descer e aí vai ser o
caos").
O que será o tal "brizolismo científico"?
Sento-Sé abre um amplo arco teórico e
expõe, de Platão a Maquiavel, as questões
sobre a centralidade do líder na política e
suas relações com as instituições legais e
os governados. Mergulha em Weber para
explicar os diferentes tipos de carisma e
esboça o de Brizola, situando-o entre dois
apelos míticos: o mito da subversão da
ordem e o mito do legado de Vargas.
Apoiado em autores consagrados, discute os vários nacionalismos, destacando
as polêmicas sobre a ideologia e a prática,
sobretudo aquelas que denunciam uma
oposição entre nacionalismo, liberalismo
e democracia. Introduz o nacionalismo
brizolista no contexto da análise sobre o
conceito histórico mais amplo e sobre o
nacionalismo brasileiro. Pretende, aí, esquadrinhar as filiações culturais, políticas
e ideológicas de um dos aspectos mais
fundamentais do brizolismo pós-79: o
nacionalismo antiamericano e antiimperialista, calcado na noção das "perdas internacionais".
A discussão do que entendi como sendo o "brizolismo utópico" é a mais interessante e a que melhor retrata o discurso
sobre o governador que abre os portões
do palácio para o povão no dia da posse.
É a utopia da integração, da inclusão dos
excluídos. É a fundação da nação pela
transformação da massa em povo, mediante um intenso programa político-pedagógico ( talvez inspirado no "Emílio"
de Rousseau).
É um projeto civilizador para a "criação
de uma nação forte, autônoma, constituída por um povo sadio, educado e esclarecido, representada e assistida por um Estado nacional poderoso e capaz de fazer
frente aos desafios impostos por concorrentes e adversários". É a construção de
um "futuro radioso", radicado na relação
com um passado fascinante, com a memória dos heróis fundadores e do próprio líder que "veio de longe" e realiza sua
missão. É a opção preferencial pelos pobres e desvalidos, numa surpreendente
associação entre as raízes cristãs (Brizola
é filho de pastor) e o positivismo republicano, fonte do trabalhismo getulista. É a
reinvenção do trabalhismo como o caminho brasileiro para o socialismo, que será
não-marxista, democrático, solidarista e
comunitário.
Universalização do ensino
Sento-Sé trabalha com os "discursos",
mas eles se fundam em fatos e na memória histórica. Traça uma boa retrospectiva
tanto do trabalhismo quanto da vida pública de Brizola, discutindo o que denomina de "Bildung" brizolista. Esta compreenderia, como elemento essencial, a
universalização do ensino, decorrente de
uma vontade política que atribui ao Estado um papel central, como promotor do
bem-estar social.
Seu marco histórico é a Revolução de
30. Seus documentos fundadores são a
Carta Testamento de Vargas, a obra de
Alberto Pasqualini e a Carta de Lisboa,
esta do fim do exílio. Seus inimigos são a
velha classe dominante e os agentes internos do imperialismo. Sua clientela privilegiada inclui os pobres e as assim chamadas minorias: mulheres, negros e índios. Seus monumentos integradores são
os Cieps e o sambódromo. Seu espaço de
conscientização popular é a Brizolândia
carioca (sobre a qual o autor nos fornece
atraentes "notas etnográficas", revelando
como Brizola se torna uma encarnação
do santo da religião civil). Sua estética é a
"estética do feio", ao identificar o tipo
brasileiro com o banguela, pobre, sujo e
mestiço. Aqui, Sento-Sé tenta nos convencer que entender o "socialismo moreno" e a metáfora do banguela -como
uma espécie de lúmpen em oposição à
classe média aninhada no PT- é entender o projeto brizolista. Não convence.
O autor revê a trajetória de Brizola a
partir da vitória em 82 no Rio de Janeiro
(quando o brizolismo "carnavalizou a
campanha") e procura as razões para as
derrotas. Assim, considera fatal para a
consolidação da liderança brizolista a negligência com a divulgação de sua imagem e de suas iniciativas e o isolamento
em relação aos setores empresariais.
Considera, ainda, que não é coincidência
o fracasso ocorrer justamente quando o
pensamento único do famigerado neoliberalismo empreende o "desmonte do legado varguista" da democracia social. E
afirma que, para os brizolistas, Brizola e o
que ele representa constituem um estorvo para as classes dominantes. Nesse sentido, "foram vítimas de um dos mais bem
organizados, agressivos e bem-sucedidos
conluios das elites para sabotar a ascensão de um governo popular no Brasil".
Conclui que a prudência recomenda
não apostar no fim do brizolismo. A conferir.
Brizolismo: Estetização da Política e Carisma
João Trajano Sento-Sé
Espaço e Tempo/ FGV
(Tel. 0/xx/ 21/262-2669)
365 págs., R$ 29,00
Maria Victoria de Mesquita Benevides é professora
de sociologia na Faculdade de Educação da USP.
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