São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


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Maria Victoria Benevides analisa tese premiada no Rio que defende o papel histórico de Leonel Brizola
Anatomia do brizolismo

MARIA VICTORIA BENEVIDES

Abro o livro e custo a crer, mas está lá, na introdução: "Do brizolismo utópico ao brizolismo científico". Título sério, sem brincadeira. A curiosidade aumenta; de que se trata, afinal? De uma leitura -levemente desconfiada- penso ter entendido o que motivou essa "boutade", logo nas primeiras páginas, como se fosse uma advertência. O autor é brizolista. O autor é também um intelectual que escreve sua tese de doutorado. As duas coisas juntas só poderiam dar no que deu: um texto denso e sofisticado, porém recortado no molde da paixão. João Sento-Sé não a esconde, antes reveste-a de cores acadêmicas e escolhe o tom pessoal para justificá-la, pois foi "seduzido pelo objeto" da pesquisa.
A sedução tem seu preço: um leitor distante ficaria com a certeza de que Leonel Brizola foi não apenas nosso herói civilizador, como o maior de todos, tocado pela graça do carisma e pelas virtudes da coragem e da coerência, embora vítima da incompreensão, do isolamento e da perseguição. Essa avaliação gloriosa não impede o interesse pelo livro, bem escrito e sempre instigante, além de outras qualidades que o fizeram merecer o prêmio de melhor tese de ciência política, outorgado pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).
De meu conhecimento é um trabalho original (com a devida vênia do pioneiro Moniz Bandeira), uma verdadeira anatomia do fenômeno do brizolismo e do que chama de "persona publica" de Brizola. Vale a pena procurar entender as mortes anunciadas e as surpreendentes ressurreições desse que permanecerá em nossa história, sem dúvida e sem ufanismos, como um grande líder de massas e um autêntico nacionalista.

Tradição e modernidade
Por brizolismo o autor não entende um movimento político (como o getulismo ou o udenismo, por exemplo), mas o conjunto dos discursos a favor e contra a liderança de Brizola, desde a volta do exílio, em 1979, até hoje. Daí o interesse em destacar não apenas as teses brizolistas e sua encampação, como também as críticas impenitentes, pela esquerda e pela direita.
Assim temos, do lado do discurso favorável, uma análise do estadista que concilia a tradição e a modernidade. Essa conciliação é definida como o arranjo brizolista entre nacionalismo, trabalhismo e social-democracia européia, forma privilegiada da inserção do novo PTB, depois PDT, na cena política da abertura.
Do lado do discurso contrário, temos a crítica intelectual ao populismo, ao carisma de demagogo e ao descaso pela democracia representativa, assim como uma avaliação bastante negativa do nacionalismo, visto como mascaramento dos conflitos na sociedade capitalista. A crítica rasteira -dos militares e das "elites" predatórias- denuncia, no líder gaúcho, o caudilho, o arrivista, o subversivo incendiário e manipulador das massas ordeiras e trabalhadoras ("com Brizola os morros vão descer e aí vai ser o caos").
O que será o tal "brizolismo científico"? Sento-Sé abre um amplo arco teórico e expõe, de Platão a Maquiavel, as questões sobre a centralidade do líder na política e suas relações com as instituições legais e os governados. Mergulha em Weber para explicar os diferentes tipos de carisma e esboça o de Brizola, situando-o entre dois apelos míticos: o mito da subversão da ordem e o mito do legado de Vargas.
Apoiado em autores consagrados, discute os vários nacionalismos, destacando as polêmicas sobre a ideologia e a prática, sobretudo aquelas que denunciam uma oposição entre nacionalismo, liberalismo e democracia. Introduz o nacionalismo brizolista no contexto da análise sobre o conceito histórico mais amplo e sobre o nacionalismo brasileiro. Pretende, aí, esquadrinhar as filiações culturais, políticas e ideológicas de um dos aspectos mais fundamentais do brizolismo pós-79: o nacionalismo antiamericano e antiimperialista, calcado na noção das "perdas internacionais".
A discussão do que entendi como sendo o "brizolismo utópico" é a mais interessante e a que melhor retrata o discurso sobre o governador que abre os portões do palácio para o povão no dia da posse. É a utopia da integração, da inclusão dos excluídos. É a fundação da nação pela transformação da massa em povo, mediante um intenso programa político-pedagógico ( talvez inspirado no "Emílio" de Rousseau).
É um projeto civilizador para a "criação de uma nação forte, autônoma, constituída por um povo sadio, educado e esclarecido, representada e assistida por um Estado nacional poderoso e capaz de fazer frente aos desafios impostos por concorrentes e adversários". É a construção de um "futuro radioso", radicado na relação com um passado fascinante, com a memória dos heróis fundadores e do próprio líder que "veio de longe" e realiza sua missão. É a opção preferencial pelos pobres e desvalidos, numa surpreendente associação entre as raízes cristãs (Brizola é filho de pastor) e o positivismo republicano, fonte do trabalhismo getulista. É a reinvenção do trabalhismo como o caminho brasileiro para o socialismo, que será não-marxista, democrático, solidarista e comunitário.

Universalização do ensino
Sento-Sé trabalha com os "discursos", mas eles se fundam em fatos e na memória histórica. Traça uma boa retrospectiva tanto do trabalhismo quanto da vida pública de Brizola, discutindo o que denomina de "Bildung" brizolista. Esta compreenderia, como elemento essencial, a universalização do ensino, decorrente de uma vontade política que atribui ao Estado um papel central, como promotor do bem-estar social.
Seu marco histórico é a Revolução de 30. Seus documentos fundadores são a Carta Testamento de Vargas, a obra de Alberto Pasqualini e a Carta de Lisboa, esta do fim do exílio. Seus inimigos são a velha classe dominante e os agentes internos do imperialismo. Sua clientela privilegiada inclui os pobres e as assim chamadas minorias: mulheres, negros e índios. Seus monumentos integradores são os Cieps e o sambódromo. Seu espaço de conscientização popular é a Brizolândia carioca (sobre a qual o autor nos fornece atraentes "notas etnográficas", revelando como Brizola se torna uma encarnação do santo da religião civil). Sua estética é a "estética do feio", ao identificar o tipo brasileiro com o banguela, pobre, sujo e mestiço. Aqui, Sento-Sé tenta nos convencer que entender o "socialismo moreno" e a metáfora do banguela -como uma espécie de lúmpen em oposição à classe média aninhada no PT- é entender o projeto brizolista. Não convence.
O autor revê a trajetória de Brizola a partir da vitória em 82 no Rio de Janeiro (quando o brizolismo "carnavalizou a campanha") e procura as razões para as derrotas. Assim, considera fatal para a consolidação da liderança brizolista a negligência com a divulgação de sua imagem e de suas iniciativas e o isolamento em relação aos setores empresariais. Considera, ainda, que não é coincidência o fracasso ocorrer justamente quando o pensamento único do famigerado neoliberalismo empreende o "desmonte do legado varguista" da democracia social. E afirma que, para os brizolistas, Brizola e o que ele representa constituem um estorvo para as classes dominantes. Nesse sentido, "foram vítimas de um dos mais bem organizados, agressivos e bem-sucedidos conluios das elites para sabotar a ascensão de um governo popular no Brasil".
Conclui que a prudência recomenda não apostar no fim do brizolismo. A conferir.



Brizolismo: Estetização da Política e Carisma
João Trajano Sento-Sé Espaço e Tempo/ FGV (Tel. 0/xx/ 21/262-2669) 365 págs., R$ 29,00



Maria Victoria de Mesquita Benevides é professora de sociologia na Faculdade de Educação da USP.


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