São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


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O martírio do Congo

MARINA DE MELLO E SOUZA

O livro de Adam Hochschild tem vários méritos, entre os quais o de despertar no leitor a capacidade de indignação e o desejo de interferir na realidade -sentimentos bastante anestesiados pela predominante sensação de falta de perspectivas e impotência diante de forças agigantadas pela enorme complexidade do mundo moderno.
O tema escolhido é fascinante: como um homem, o rei Leopoldo 2�, à frente de um país sem importância no panorama mundial, a Bélgica, tornou-se dono de um enorme pedaço do continente africano, explorando-o em proveito próprio por cerca de 20 anos, do final da década de 1870 até sua morte, em 1909, quando passou os seus domínios para o controle do governo belga.
Por outro lado, a maneira como o autor entrelaça as personagens que conduzem a história narrada e o contexto no qual os fatos se desenrolam -de expansão do imperialismo capitalista, no qual as potências mundiais dividem o mundo e exploram suas colônias sem nenhuma consideração pelas populações locais- permite ao leitor perceber a relação entre processos econômicos e atores históricos, entre movimentos sociais e determinantes culturais.
Além do refinamento de sua construção e mestria do estilo, o livro toca num ponto fundamental da história contemporânea, cada vez mais evidente e causador de um profundo mal-estar nas almas mais sensíveis: mostra com crueza, tomando o caso do Congo, o martírio imposto à África pelo conjunto das nações modernas. Tendo por quatro séculos abastecido de mão-de-obra as colônias americanas, o que provocou mudanças radicais no interior do continente, não só no que diz respeito a perdas demográficas, mas também a novas articulações de poder e intensificação das guerras internas, tornou-se, a partir do final do século 19, fornecedora de matérias-primas e minérios, fundamentais para o desenvolvimento do capitalismo industrial. Na rasteira de exploradores, que logo divulgavam o conhecimento recém-adquirido em suas viagens, a cobiça das principais potências européias ficou evidente quando dividiram entre si o continente africano, em 1884, na Conferência de Berlim, ignorando as histórias locais e privilegiando os instrumentos de medição.

Regime de exploração
Alegando combater o tráfico de escravos, ainda praticado por comerciantes árabes, e a suprema missão de levar a civilização aos povos bárbaros, Leopoldo 2� instalou no Congo um regime de exploração, voltado primeiro para a comercialização do marfim e depois da borracha, baseado no terror e no trabalho escravo, e que lhe permitiu amealhar uma enorme fortuna pessoal.
Os frequentes massacres de tribos inteiras e a brutalidade com que os africanos eram tratados pelo exército e administradores belgas, quando não se submetiam às suas ordens, nos são relatados a despeito do empenho de Leopoldo e seus asseclas em apagar todos os vestígios de suas ações. Muito do que sabemos a respeito do ocorrido no Congo nessa época foi registrado por missionários e funcionários chocados com as cenas presenciadas, que ganham enorme densidade na narrativa de Hochschild, com destaque para E.D. Morel, jornalista inglês por dez anos à frente de um intenso movimento de denúncia às atrocidades cometidas pelos belgas contra os congoleses. Considerado pelo autor como o primeiro movimento em defesa dos direitos humanos, mobilizou por uma década parte da sociedade inglesa e espraiou-se pelos EUA e outros países da Europa.
Mas, a despeito do heroísmo e admiração projetados sobre as principais personagens envolvidas nessa campanha, ao fecharmos o livro ficamos com a pesada sensação de que todo o esforço foi em vão. A exploração dos povos africanos, iniciada no século 15 pelos comerciantes portugueses e agudizada pelo colonialismo imperialista, prossegue até hoje, mudando apenas os mecanismos pelos quais ela se dá e fazendo do continente africano o maior mártir da história da humanidade. Mesmo assim, o exemplo das personagens envolvidas nas denúncias do que ocorria no Congo nos afasta do ceticismo e nos leva a acreditar em atitudes que podem não afetar as estruturas de exploração, mas talvez façam diferença para algumas pessoas.



O Fantasma do Rei Leopoldo - Uma História de Cobiça, Terror e Heroísmo na África Colonial
Adam Hochschild Tradução: Beth Vieira Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/866-0801) 382 págs., R$ 25,50



Marina de Mello e Souza é doutora em história pela Universidade Federal Fluminense.


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