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O martírio do Congo
MARINA DE MELLO E SOUZA
O livro de Adam Hochschild tem vários méritos,
entre os quais o de despertar no leitor a capacidade de
indignação e o desejo de interferir na realidade
-sentimentos bastante anestesiados pela
predominante sensação de falta de perspectivas e
impotência diante de forças agigantadas pela enorme
complexidade do mundo moderno.
O tema escolhido é fascinante: como um homem, o
rei Leopoldo 2�, à frente de um país sem importância
no panorama mundial, a Bélgica, tornou-se dono de
um enorme pedaço do continente africano,
explorando-o em proveito próprio por cerca de 20
anos, do final da década de 1870 até sua morte, em
1909, quando passou os seus domínios para o controle
do governo belga.
Por outro lado, a maneira como o autor entrelaça as
personagens que conduzem a história narrada e o
contexto no qual os fatos se desenrolam -de
expansão do imperialismo capitalista, no qual as
potências mundiais dividem o mundo e exploram suas
colônias sem nenhuma consideração pelas populações
locais- permite ao leitor perceber a relação entre
processos econômicos e atores históricos, entre
movimentos sociais e determinantes culturais.
Além do refinamento de sua construção e mestria do
estilo, o livro toca num ponto fundamental da história
contemporânea, cada vez mais evidente e causador de
um profundo mal-estar nas almas mais sensíveis:
mostra com crueza, tomando o caso do Congo, o
martírio imposto à África pelo conjunto das nações
modernas. Tendo por quatro séculos abastecido de
mão-de-obra as colônias americanas, o que provocou
mudanças radicais no interior do continente, não só
no que diz respeito a perdas demográficas, mas
também a novas articulações de poder e intensificação
das guerras internas, tornou-se, a partir do final do
século 19, fornecedora de matérias-primas e minérios,
fundamentais para o desenvolvimento do capitalismo
industrial. Na rasteira de exploradores, que logo
divulgavam o conhecimento recém-adquirido em suas
viagens, a cobiça das principais potências européias
ficou evidente quando dividiram entre si o continente
africano, em 1884, na Conferência de Berlim,
ignorando as histórias locais e privilegiando os
instrumentos de medição.
Regime de exploração
Alegando combater o tráfico de escravos, ainda praticado por comerciantes árabes, e a suprema missão de
levar a civilização aos povos bárbaros, Leopoldo 2� instalou no Congo um regime de exploração, voltado primeiro para a comercialização do marfim e depois da
borracha, baseado no terror e no trabalho escravo, e
que lhe permitiu amealhar uma enorme fortuna pessoal.
Os frequentes massacres de tribos inteiras e a brutalidade com que os africanos eram tratados pelo exército
e administradores belgas, quando não se submetiam
às suas ordens, nos são relatados a despeito do empenho de Leopoldo e seus asseclas em apagar todos os
vestígios de suas ações. Muito do que sabemos a respeito do ocorrido no Congo nessa época foi registrado
por missionários e funcionários chocados com as cenas presenciadas, que ganham enorme densidade na
narrativa de Hochschild, com destaque para E.D. Morel, jornalista inglês por dez anos à frente de um intenso movimento de denúncia às atrocidades cometidas
pelos belgas contra os congoleses. Considerado pelo
autor como o primeiro movimento em defesa dos direitos humanos, mobilizou por uma década parte da
sociedade inglesa e espraiou-se pelos EUA e outros
países da Europa.
Mas, a despeito do heroísmo e admiração projetados
sobre as principais personagens envolvidas nessa campanha, ao fecharmos o livro ficamos com a pesada sensação de que todo o esforço foi em vão. A exploração
dos povos africanos, iniciada no século 15 pelos comerciantes portugueses e agudizada pelo colonialismo imperialista, prossegue até hoje, mudando apenas os mecanismos pelos quais ela se dá e fazendo do continente
africano o maior mártir da história da humanidade.
Mesmo assim, o exemplo das personagens envolvidas
nas denúncias do que ocorria no Congo nos afasta do
ceticismo e nos leva a acreditar em atitudes que podem
não afetar as estruturas de exploração, mas talvez façam diferença para algumas pessoas.
O Fantasma do Rei Leopoldo - Uma História de Cobiça,
Terror e Heroísmo na África Colonial
Adam Hochschild
Tradução: Beth Vieira
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/866-0801)
382 págs., R$ 25,50
Marina de Mello e Souza é doutora em história pela Universidade Federal Fluminense.
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