São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O encontro das artes

OSCAR NIEMEYER


Agora foi uma escultura em homenagem à paz que concebi. Duas asas se transformaram num grande pássaro
O problema da integração das artes plásticas com a arquitetura sempre me seduziu. Com que satisfação eu lembro o período da Renascença italiana, as pinturas fantásticas com que Leonardo da Vinci, Rafael e Michelangelo enriqueceram a arquitetura daquela época! Basta imaginar o desinteresse que teriam aqueles palácios e igrejas, se as artes plásticas neles não estivessem inseridas, para sentir a importância de manter esse princípio de integração tão necessário. É verdade que antes, muito antes de esse princípio admirável ser discutido, os egípcios já o adotavam, com as enormes esculturas projetadas e as paredes cheias de desenhos e relevos. E com que liberdade o faziam! Ah, os homens com cabeça de pássaro, como me detinha, entusiasmado, diante das fotografias dessas esculturas extraordinárias!
Lembro de novo o período da Renascença: uma volta ao passado desnecessária, as colunas gregas repetidas e a arquitetura tão medíocre que até retornar à arquitetura romana foi pensado. Palladio... quanta regra e preocupação de simetria tinha na cabeça, como não pôde compreender a beleza do Palácio dos Doges, a ponto de justificar sua destruição, dizendo: "Na arquitetura, o pesado é embaixo, e o mais leve em cima"! Um equívoco que a evolução da técnica logo desfez! Tudo isso a obra de Bertrand Jestaz, "A Renascença da Arquitetura: de Brunelleschi a Palladio", explica muito bem.
E como o Palácio dos Doges era bonito! A estrutura vazada, leve, cheia de curvas. E a fachada severa, quase cega, a criar o contraste desejado com as pequenas aberturas projetadas. E, dentro, no grande salão (como o arquiteto Calendario pensava feito nós!) nenhuma coluna e uma fantástica treliça de madeira resolvendo o grande vão.
Leio o texto e fico a sorrir constatando que fugi do assunto da integração das artes plásticas com a arquitetura. E lembro logo como nele influí. Recordo-me, muito moço, a correr com o proprietário, meu amigo Peixoto, a obra do colégio de Cataguazes, em Minas Gerais. Estávamos diante de uma extensa parede branca, e eu lhe sugeri: "Você devia botar nesta parede um mural de Portinari". Surpreso, ele sorriu sem dizer nada, mas no dia seguinte me falou: "Oscar, vamos chamar o Portinari". E lá fui eu, meses depois, com o grande pintor, a sacolejar pelas estradas de terra, os ouvidos tapados com algodão tal era a poeira que entrava pelo velho carro.
O mural foi feito. Era belíssimo, e todos diziam que Portinari dera à figura de Tiradentes qualquer coisa familiar à fisionomia de Prestes. Não era novidade. Como tudo se repete! Hoje se discute por que Leonardo da Vinci, em sua "Última Ceia", conferiu à figura do apóstolo ao lado de Cristo traços tão femininos, que o romance "O Código da Vinci", hoje muito debatido, associa a Madalena.
O mural de Portinari foi depois vendido ao governo de São Paulo, e hoje está exposto no Memorial da América Latina. Foi o primeiro grande mural pintado por Portinari.
Foi no período de Capanema que a questão da integração entre as artes voltou a crescer entre nós. Recordo-me da época em que os afrescos para o edifício sede do Ministério de Educação e Saúde foram elaborados, das visitas que com Capanema eu fazia para ver as pinturas em execução na casa de Portinari, no Cosme Velho. Dos amigos intelectuais do pintor que compareciam, desejosos de sugerir pequenos detalhes sobre os temas neles tratados.
Até Capanema se apaixonou pelas obras de arte que eram executadas para aquele edifício, visitando Portinari e, mais próximo, o ateliê onde Celso Antonio realizava uma grande escultura, "O Homem Brasileiro", uma figura sentada que, dizia, "se ficar de pé, terá mais de 20 metros". E, fazendo graça, completava: "E o pênis vai ter quase um metro!". Emocionado, Celso Antonio escurecia o ambiente para com uma vela mostrar melhor os relevos da sua escultura: "Era assim que o meu mestre francês Bourdelle fazia".
Um dia, não sabemos por que, a escultura se desmanchou no chão, e desapareceu "O Homem Brasileiro" e, anos depois, o nosso amigo Celso Antonio.
De minha parte, continuei interessado na idéia da integração entre as artes. Veio a Pampulha, e chamei Portinari para desenhar a grande fachada de azulejos, o extenso painel localizado no interior da igreja e a Via-Sacra, Paulo Werneck para os desenhos da cobertura e Ceschiatti para os baixos-relevos da entrada.
Com a construção de Brasília voltei a convocar outros artistas, como Di Cavalcanti, Bulcão, Ceschiatti, Bruno Giorgi etc. Um sistema de trabalho que se multiplicou com a criação do Memorial da América Latina, onde mais de 20 artistas foram convidados.
Interessado no desenho, fui pouco a pouco me transformando num artista plástico, desenhando três grandes figuras femininas a dançarem na parede de azulejos da fachada principal do teatro no Caminho Niemeyer, em Niterói.
E a escultura também me convocou. Escultura espacial, como prefiro. E comecei a desenhar grandes formas abstratas soltas no espaço, croquis, mulheres nuas, protestos de natureza política, enfim, tudo que a vida, com sua alegrias e tristezas, me levava a fazer.
Agora foi uma escultura em homenagem à paz que concebi. Duas asas se transformaram num grande pássaro que a todos agradou. Tentei fazê-la mais abstrata, mas era o pássaro que mais emocionava.
E foi aí que me lembrei dos animais que os antigos egípcios esculpiam, enormes, sentados, impassíveis, diante dos velhos palácios. Estava em boa companhia. E a minha escultura vai sugerir um pássaro mesmo.
O governador Roriz gostou do meu trabalho e vai construí-lo no setor cultural do Eixo Monumental. Será o monumento à paz tão ofendida.
Oscar Niemeyer, 97, arquiteto, é um dos criadores de Brasília (DF). Tem obras edificadas na Alemanha, na Argélia, nos EUA, na França, em Israel, na Itália, no Líbano e em Portugal, entre outros países.

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