São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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O VOTO NO IRAQUE

Sob ameaça de atentados terroristas, os iraquianos vão hoje às urnas eleger um Legislativo que terá a tarefa de escrever uma nova constituição para o país. O pleito, que deveria marcar o assentamento da pedra fundamental da democracia no Iraque e o triunfo da Doutrina Bush após a rápida ação bélica que derrubou a ditadura de Saddam Hussein, ocorre em meio a uma guerra civil que poderá assumir proporções ainda mais preocupantes.
O experimento democrático patrocinado pelos EUA, embora represente algo raro no mundo árabe, fértil em governos ditatoriais, não pode deixar de ser visto com uma dose de ceticismo. As condições em que transcorre o processo eleitoral são excepcionais e certamente subtraem algo de sua representatividade. Em que pese a liberdade de expressão e de organização partidária -em si um avanço-, trata-se de um país ocupado, onde grupos resistem violentamente aos invasores, promovem atentados e se opõem ao pleito.
Não bastasse, o Iraque é atravessado por divisões étnicas e religiosas que tornam o quadro político ainda mais crítico e complexo. A segurança é tão precária no país que parte da população não poderá votar. E, como a violência é mais intensa na região dos sunitas, que são cerca de 20% dos iraquianos, já se sabe que sua representação será diminuída. Partidos sunitas renunciaram a participar da eleição, e os EUA, na tentativa de contornar o problema, pretendem encontrar uma maneira de indicar representantes desse grupo -que constituía a elite governante sob Saddam- para o Parlamento.
Os problemas que cercam esse primeiro passo da "democracia" no Iraque não invalidam as chances de que no futuro o país venha a organizar instituições representativas e verdadeiramente democráticas. Cenários verossímeis entretanto incluem no curto e médio prazos a continuidade dos atos de resistência e dos atentados terroristas, que vêm atingindo muito mais a população civil do que os ocupantes estrangeiros, a intensificação da guerra entre facções e mesmo uma possível fragmentação do Iraque em três Estados -um xiita, um sunita e um curdo. Nesse caso, a disputa territorial, notadamente pelos ricos campos de petróleo existentes no sul e no norte, nada teria de pacífica. É, aliás, o petróleo e seu elevado valor estratégico que tornam o Iraque e todo o Oriente Médio o centro das atenções mundiais.
Em hipóteses mais extremas, a parte xiita do Iraque (60% da população) cairia sob influência do Irã e se tornaria hostil aos EUA. A fundação de um Estado curdo no norte (pouco menos de 20% dos iraquianos) encontraria a firme oposição da Turquia, país que enfrenta problemas para conter os anseios autonomistas de sua própria população curda.
Existe entre especialistas o relativo consenso de que os norte-americanos desperdiçaram, logo após a queda de Saddam, a chance de agir mais decisivamente para criar um ambiente seguro e favorável às eleições. A resistência conseguiu instalar-se de forma mais disseminada do que se esperava e, ao dificultar os progressos da reconstrução, paulatinamente ganhou o apoio de uma população cada vez mais decepcionada com os resultados da ocupação estrangeira. Foi nesse processo que os norte-americanos perderam a chamada batalha pelos corações e mentes dos iraquianos, sem o que é praticamente impossível vencer a guerra.
A prioridade da Casa Branca agora é criar uma situação na qual possa retirar suas forças sem que isso pareça uma derrota. Mesmo esse objetivo, pouco ambicioso para quem já pretendeu lançar a partir do Iraque a democratização do Oriente Médio, parece difícil no curto prazo.

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