São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A República e a democracia em questão

FÁBIO KONDER COMPARATO

O referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo veio, enfim, tirar os nossos oligarcas dos bastidores e trazê-los à boca de cena, sob a luz dos holofotes.
Não nos enganemos, porém. A nossa oligarquia não está minimamente preocupada com a possibilidade de não mais poder vender ou comprar legalmente armas de fogo. Para ela, isso é questão de somenos. As classes dominantes neste país continuarão a ser as únicas a poder dispensar a segurança pública, mantendo a seu serviço numerosas e bem armadas guardas particulares.


O referendo de hoje levanta outra questão crucial: a possibilidade de instituir uma verdadeira República entre nós


Aliás, é bom que se saiba que em vários Estados, a começar por São Paulo, o pessoal empregado pelas empresas privadas de segurança é mais numeroso que o efetivo total da Polícia Militar.
O que preocupa e alarma os nossos potentados privados é outra coisa. É o fato insólito de se começar, ainda que timidamente, a mostrar ao povo brasileiro que ele detém pela Constituição Federal o poder supremo e que tudo tem sido feito, desde sempre, para impedi-lo de decidir diretamente as grandes questões nacionais.
Fala-se o tempo todo em mandato político e designam-se habitualmente os eleitos como mandatários do povo. Mas o nosso sistema de representação popular nada tem que ver com a relação de mandato. Trata-se, antes, daquilo que os juristas classificam como representação necessária. O povo, tal como o menor impúbere ou o deficiente mental, não pode nunca exprimir a sua vontade. Ele deve, portanto, ser permanentemente tutelado por aqueles que elegeu.
Mas, então, protestarão os de sempre, as eleições não são livres neste país?
É aí que reside precisamente a astúcia dos nossos oligarcas. O povo elege os que devem representá-lo na cena política, mas não pode nunca destituí-los. O povo escolhe os ocupantes de cargos políticos, mas não tem nenhum poder para fazer com que eles respeitem os direitos sociais declarados na Constituição Federal: não só o direito fundamental à segurança, mas também o direito ao trabalho, à saúde, à educação, à moradia, à reforma agrária, à previdência, à assistência social.
O governo se desculpa dessa sua grosseira omissão dizendo que não tem recursos financeiros para tanto. O dinheiro público arrecadado do povo é majoritariamente reservado para pagar os juros da dívida pública (os mais elevados do mundo, cuja taxa, em termos deflacionados, é mais do que o dobro da do segundo colocado, a China), juros esses destinados a cevar generosamente os capitalistas estrangeiros e os 10% mais ricos da nossa população, os quais açambarcam 47% da renda nacional.
É por isso que alguns grandes centros de comunicação de massa, organizados para servir a oligarquia, e não o interesse público, propõem, à guisa de reforma política, o eterno remanejamento do sistema eleitoral e partidário. Eles sabem, perfeitamente, que a melhor maneira de manter intocada a substância do seu poder é fazer mudanças de fachada no edifício político em ruínas.
No século 18, Rousseau soube desmascarar a malícia da burguesia, que louvava calorosamente, pela boca dos "philosophes", a excelência do sistema eleitoral inglês. Manifestando a sua insopitável vocação de estraga-festa, Jean-Jacques denunciou: "O povo inglês pensa ser livre, mas se engana redondamente; ele só é livre durante a eleição dos membros do Parlamento: imediatamente após essa eleição, ele é escravo, fica reduzido a nada. Nos breves momentos de sua liberdade, o uso que dela faz bem merece que a perca".
É exatamente o que ocorre em nosso país.
Até aí, quanto à democracia.
Mas o referendo de hoje também levanta outra questão crucial: a possibilidade de instituir uma verdadeira República entre nós.
O adjetivo "publicus", em latim, designa aquilo que pertence ao povo e que não pode, por conseguinte, ser sujeito à apropriação privada.
Nesse sentido, o capitalismo representa a negação mais radical da vida republicana. O seu objetivo maior consiste em tudo privatizar, dos bens e serviços públicos à virtude e aos costumes políticos. Já logramos, sob o impacto da vaga mundial de neoliberalismo, privatizar largamente neste país os serviços públicos de educação, de saúde, de previdência e de assistência social (por meio da chamada "responsabilidade social das empresas"). Trata-se agora de saber se vamos também privatizar os serviços de segurança e, mais adiante, como conseqüência inelutável, o sistema prisional.
É isso, afinal, em última análise, o que está em jogo na decisão popular de hoje.

Fábio Konder Comparato, 69, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, é presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB. É autor, entre outras obras, de "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos".


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