São Paulo, Domingo, 21 de Novembro de 1999
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A ilusão de detectar o mal



O bem e o mal não estão radicalmente separados, mas dependem de seus canais de expressão

RENATO JANINE RIBEIRO

Uma reação inquietante, após o crime do MorumbiShopping, resume-se numa palavra só: detecção. Alguns propõem instalar detectores de metais à entrada dos shoppings, acreditando assim restaurar seu caráter de oásis de classe média. Outros, receosos de loucos (como se estes não fossem mais vezes vítimas do que algozes), falam no que eu chamaria a detecção de mentais, ou seja, de doentes mentais.
Por que tanta ênfase, repressiva, na detecção? Há crimes, sim, que podem ser cometidos em qualquer lugar do mundo e a qualquer momento, de modo que a histeria de detectar matéria metálica ou cinzenta não adianta nada. Mas um pouco de experiência mostra que o horror, como a felicidade, não surge fora de contexto. Chacinas como as que ocorrem em São Paulo, no Jardim Ângela ou no shopping, somente se dão porque a sociedade serve de caldo de cultura. Vamos a um exemplo.
Desde Freud, sabe-se que o bom cirurgião é um sádico que achou uma saída adequada, valorizada socialmente, para seu gosto de ver e até produzir sangue. O bem e o mal não estão radicalmente separados, mas dependem de seus canais de expressão.
Um sádico que tenha condições sociais de extravasar, como cirurgião, seu desejo de ferir: o que queremos de melhor? Mas, se ele não tiver esses meios, pode ser que passe a vida entre reprimir suas pulsões agressivas, sofrendo muito com isso, e voltá-las contra os outros, fazendo-os sofrer.
Daí duas conclusões. A primeira é que são inúteis, contraproducentes e mesmo nocivas as declarações bem-pensantes em favor de criar barreiras contra o mal. Reprimindo o que é do ser humano, elas se tornam incapazes de fazer o que realmente importa, isto é, construir não comportas ou barreiras, mas canais, e mexer não nuns poucos indivíduos, mas no contexto social. Dizer, como o pouco inteligente governador do Texas, que uma chacina mostra que alguém "tem mal no coração" é ignorar que todos temos mal, e bem, dentro de nós e que uma sociedade tem mais êxito quando consegue gerar canais de expressão socialmente positivos para as potencialidades, de toda ordem, que nela há.
A segunda é que devemos construir esses canais. Por exemplo, por que a droga hoje devasta, quando já fez parte de ritos de enorme riqueza integradora? Isso não é culpa dos camponeses da Colômbia que a produzem, mas de uma sociedade, como a norte-americana, que a consome em altas doses e o faz porque nela a vida tem cada vez menos sentido.
O problema está nesse esvaziamento da vida, produzido pelo capitalismo mais avançado. E isso também tem a ver com a falta de rumo. Os jovens têm cada vez mais energia, mas para quê? Com o desemprego, com o isolamento das pessoas, com o contato cada vez maior com as máquinas e menor com gente, o que se espera?
Daí que seja preciso cessar a estupidez bem-pensante. Imaginemos uma faculdade de medicina que excluísse de seu corpo os sádicos: restariam bons cirurgiões? O problema não está em detectar indivíduos que seriam perigosos -isso todos nós podemos ser-, mas em construir uma sociedade na qual quem vive possa ter trabalho, e quem sente algo possa encontrar canais de realização pessoal que ajudem os outros, e não que os prejudiquem.
Meios de construir essa sociedade nós temos. O que falta é vontade política. E buscar bodes expiatórios para o horror detectando metais ou doentes mentais é o melhor pretexto para não fazer nada.
Renato Janine Ribeiro, 49, é professor titular de ética e filosofia política da USP (Universidade de São Paulo). É autor de "A Última Razão dos Reis" (Companhia das Letras), entre outras obras.


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