São Paulo, sábado, 21 de maio de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O MST é um movimento autônomo?

SIM

Um movimento contra a escravidão

JOSÉ ARBEX JR.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST, comemora a sua maioridade (21 anos) com honra, pompa e circunstância. A marcha sobre Brasília demonstra, "urbi et orbi", a sua independência frente ao governo federal, a sua vitalidade como movimento social e o seu compromisso inarredável de lutar pela reforma agrária.
Não é pouco, especialmente quando políticos e intelectuais até ontem comprometidos com a luta pela transformação social, hoje, acometidos por providencial amnésia, negociam sem pudor os próprios princípios no bazar de cargos e "oportunidades de mercado".
Não pertenço ao MST, não o represento nem tenho procuração para falar pelo movimento. Mas, como cidadão a ele vinculado por laços de solidariedade, sinto-me orgulhoso de sua luta, que é histórica em pelo menos dois sentidos.
Primeiro, por ter como objetivo completar a tarefa de abolir a escravidão: a dos pobres ao capital e a da terra ao latifúndio. Se há um denominador comum a cinco séculos de Brasil, é o fato de que a maioria pobre nunca teve acesso à terra. A infâmia do latifúndio marca a história com o látego do senhor de escravos: até 1850 a terra era monopólio da Coroa; depois, foi dividida entre a nobreza, os capitalistas brancos europeus e quem mais pudesse pagar; no século 20, foi invadida e grilada por coronéis e empresas internacionais; e agora é entregue à sanha do "moderno" agronegócio, aliança entre fazendeiros e meia dúzia de transnacionais que dominam a agricultura brasileira.
Nunca a terra pertenceu ao negro alforriado, ao mestiço miserável, ao branco marginalizado. O latifúndio, produtivo ou não, é sinônimo de atraso, por criar desigualdade, concentração de renda, fome -ou "subnutrição", como preferem alguns de nossos doutores-, êxodo rural e tudo o que ele implica de nefasto. Pois bem, o MST quer abolir o latifúndio, como condição indispensável para resolver o problema da pobreza e da desigualdade, e impulsionar uma transformação social de grandes proporções.
Não, caro leitor, não é o comunismo. As grandes potências capitalistas do planeta -a começar dos Estados Unidos e França- promoveram a distribuição de terra e investiram no trabalho livre. Aliás, por isso se transformaram em potências.
Segundo, a luta do MST é histórica por estar fazendo história. Nunca um movimento de camponeses organizado em escala nacional durou tanto nem criou tantos vínculos capilares com a sociedade civil. A elite sempre foi eficiente quando se tratou de isolar e dizimar os movimentos populares (basta lembrar Palmares, Canudos, as ligas camponesas, a Ultab, o Master e tantos outros).
O MST sobrevive com a teimosia e o atrevimento de quem sabe que a sua luta tem dimensão épica, faz parte da batalha mais geral pela emancipação nacional. Por isso, mantém alianças com o conjunto de movimentos sociais, organizações de trabalhadores, sindicais, populares e intelectuais que não abandonaram a perspectiva de fazer do Brasil um país soberano.
Graças ao serviço de permanente desinformação praticado pela mídia, poucos sabem que o MST mantém 1.300 escolas de ensino fundamental e emprega 3.000 educadores que cuidam de 160 mil crianças e adolescentes. Por meio do convênio Brasil Alfabetizado, acertado com o MEC, cerca de 30 mil adultos foram alfabetizados, com o auxílio de 2.000 educadores populares voluntários. Outros 300 educadores trabalham com crianças de até seis anos nas "cirandas infantis", que funcionam nos assentamentos e acampamentos. Esse trabalho mereceu o Prêmio Unesco de Excelência Pedagógica.
Em janeiro passado, o MST inaugurou a primeira universidade popular do Brasil, em Guararema, a 60 km de São Paulo -para horror de certos doutores preconceituosos, incapazes de aceitar a idéia de que o "populacho" possa organizar um centro produtor de conhecimento de alto nível e rigor científico. A sua sede foi construída com trabalho voluntário e com dinheiro oriundo de contribuições de organizações, artistas e intelectuais brasileiros e estrangeiros (incluindo Sebastião Salgado, Chico Buarque e José Saramago). Não por acaso, a universidade foi batizada com o nome de Florestan Fernandes e saudada, no dia de sua inauguração, por Antonio Candido.
O MST, mundialmente reconhecido, respeitado e admirado, só conseguiu realizar tanto por ser autônomo em relação aos partidos políticos e a quaisquer outras instituições estranhas aos assentamentos e acampamentos que constituem a sua base e a sua vida. Não se submete, portanto, ao jogo de alianças, acordos espúrios, conveniências eleitorais, cálculos e táticas arquitetado nos gabinetes obscuros dos palácios. O MST só não é autônomo em relação ao conjunto da nação oprimida. Ao contrário: a ela, somente, subordina-se e atrela o seu destino.
Senhores da terra, é muito fácil acabar com o MST. Basta realizar a reforma agrária.


José Arbex Jr., 47, jornalista, doutor em história pela USP, é editor especial da revista "Caros Amigos" e autor de "Showrnalismo - a Notícia como Espetáculo" (editora Casa Amarela).
@ - arbex@uol.com.br



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