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TENDÊNCIAS/DEBATES
O MST é um movimento autônomo?
NÃO
A dependência oculta
JOSÉ DE SOUZA MARTINS
O MST não é uma organização política autônoma nem é um movimento social que disponha, por isso, da
independência própria dessa forma de
manifestação das demandas sociais.
Mas é uma importante expressão do
que vem se tornando a política na modernidade anômala dos países de grandes desencontros entre o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento
social, como o Brasil. Países em que populações retardatárias da história emergem nas brechas do sistema político e
apresentam, de forma ritualmente tradicionalista, suas demandas sociais aparentemente extemporâneas. Estamos
em face da realidade política de populações que tentam fazer um acerto de contas com a história.
Justamente porque sua data histórica
sugere que suas demandas são demandas atrasadas e fora de época é que a organização assume a aparência de uma
autonomia que não é real. De modo
que, mesmo com seus aliados mais importantes, de cujas organizações são,
hoje, suportes fundamentais, como o
PT e a igreja, pode manter uma relação
de estranhamento crítico que se manifesta em cobranças, como essas da marcha do MST sobre Brasília. Mas, chegam lá, o presidente veste o boné mais
uma vez e os ministros dizem que já está
tudo certo e arranjado. A reivindicação
oculta da marcha atendeu a uma necessidade do governo: dar visibilidade para
os seus êxitos, ainda que limitados, na
questão agrária, muito aquém do anunciado. Sobretudo mostrar um governo
aberto às reivindicações camponesas.
O MST é certamente uma organização
constitutiva do Partido dos Trabalhadores, uma base do partido. Sem a Pastoral da Terra -da qual o MST se origina- e sem o MST, dificilmente o PT teria se expandido tão extensamente no
interior e dificilmente se tornaria o único partido brasileiro com uma ampla
base rural e popular. Em termos da extensão territorial de sua presença, o PT é
muito mais um partido rural do que um
partido operário.
Quando, na campanha eleitoral de
Lula à Presidência, essa organização decidiu refrear suas manifestações e as
ocupações de terra, fê-lo exatamente
para não prejudicar a candidatura petista, para não a carimbar com nenhum
timbre de radicalismo. O calendário das
agitações no campo regulado pelo calendário eleitoral, não só nesse caso,
tem sido uma boa indicação do vínculo
partidário da organização.
O MST é também uma das principais
e mais interessantes expressões políticas do catolicismo pós-conciliar na
América Latina. Ele se constituiu a partir de quadros das pastorais sociais. Foi
quando começou a ficar evidente que
mesmo os bispos chamados progressistas tinham limites claros para se envolverem na pastoral de suplência que resultou do profundo compromisso da
Igreja Católica com os trabalhadores rurais. Era o cenário histórico da ditadura
militar, da violência genocida e da violação radical da própria condição humana, sobretudo na chamada Amazônia
Legal, mais da metade do território brasileiro.
A busca de alternativas e o posicionamento político dos agentes de pastoral
envolvidos na arregimentação e no protesto das vítimas pediu também uma
opção política radical. Esse era o limite
dos bispos com o fim da ditadura. O canal de expressão dessa mobilização
camponesa teria que ser outro. O nascimento do MST foi o meio de fazer fluir
para o âmbito próprio da política o que
já não tinha condições de se organizar e
expressar plenamente no âmbito da
igreja.
O MST se tornou de vários modos expressão do catolicismo militante, pelo
apoio moral, logístico e material. Importou da igreja formas litúrgicas de
manifestações de massa, expressões
ampliadas das romarias da terra, variantes políticas das procissões religiosas. O MST não se move apenas com base em ideologia política, mas sobretudo
com base na mística milenarista de um
tempo de redenção dos pobres e oprimidos.
Porém a principal herança que o MST
recebeu da igreja, e seguramente a mais
interessante, é a da grande tradição do
pensamento conservador, aquele modo
de pensar o mundo que, no século 19,
opôs-se ao liberalismo da revolução do
século 18, como mostrou Robert Nisbet.
No lugar do indivíduo fragmentário, a
concepção de pessoa; no lugar da sociedade da sociabilidade abstrata e interesseira, a comunidade da sociabilidade
solidária e afetiva. Os valores que norteiam o MST vêm desse estoque de
idéias conservadoras: a propriedade da
terra, o trabalho comunitário, a religião,
a família, a comunidade. De fato, ele está muito longe do marxismo. E muito
longe da independência: o MST até hoje
não tem uma compreensão objetiva de
seu lugar na história, justamente porque não tem autonomia.
José de Souza Martins, 66, é professor titular
aposentado do Departamento de Sociologia da
Faculdade de Filosofia da USP. É autor de, entre
outros livros, "O Sujeito Oculto - Ordem e transgressão na reforma agrária" (editora da UFRGS).
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