São Paulo, sábado, 21 de maio de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O MST é um movimento autônomo?

NÃO

A dependência oculta

JOSÉ DE SOUZA MARTINS

O MST não é uma organização política autônoma nem é um movimento social que disponha, por isso, da independência própria dessa forma de manifestação das demandas sociais. Mas é uma importante expressão do que vem se tornando a política na modernidade anômala dos países de grandes desencontros entre o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social, como o Brasil. Países em que populações retardatárias da história emergem nas brechas do sistema político e apresentam, de forma ritualmente tradicionalista, suas demandas sociais aparentemente extemporâneas. Estamos em face da realidade política de populações que tentam fazer um acerto de contas com a história.
Justamente porque sua data histórica sugere que suas demandas são demandas atrasadas e fora de época é que a organização assume a aparência de uma autonomia que não é real. De modo que, mesmo com seus aliados mais importantes, de cujas organizações são, hoje, suportes fundamentais, como o PT e a igreja, pode manter uma relação de estranhamento crítico que se manifesta em cobranças, como essas da marcha do MST sobre Brasília. Mas, chegam lá, o presidente veste o boné mais uma vez e os ministros dizem que já está tudo certo e arranjado. A reivindicação oculta da marcha atendeu a uma necessidade do governo: dar visibilidade para os seus êxitos, ainda que limitados, na questão agrária, muito aquém do anunciado. Sobretudo mostrar um governo aberto às reivindicações camponesas.
O MST é certamente uma organização constitutiva do Partido dos Trabalhadores, uma base do partido. Sem a Pastoral da Terra -da qual o MST se origina- e sem o MST, dificilmente o PT teria se expandido tão extensamente no interior e dificilmente se tornaria o único partido brasileiro com uma ampla base rural e popular. Em termos da extensão territorial de sua presença, o PT é muito mais um partido rural do que um partido operário.
Quando, na campanha eleitoral de Lula à Presidência, essa organização decidiu refrear suas manifestações e as ocupações de terra, fê-lo exatamente para não prejudicar a candidatura petista, para não a carimbar com nenhum timbre de radicalismo. O calendário das agitações no campo regulado pelo calendário eleitoral, não só nesse caso, tem sido uma boa indicação do vínculo partidário da organização.
O MST é também uma das principais e mais interessantes expressões políticas do catolicismo pós-conciliar na América Latina. Ele se constituiu a partir de quadros das pastorais sociais. Foi quando começou a ficar evidente que mesmo os bispos chamados progressistas tinham limites claros para se envolverem na pastoral de suplência que resultou do profundo compromisso da Igreja Católica com os trabalhadores rurais. Era o cenário histórico da ditadura militar, da violência genocida e da violação radical da própria condição humana, sobretudo na chamada Amazônia Legal, mais da metade do território brasileiro.
A busca de alternativas e o posicionamento político dos agentes de pastoral envolvidos na arregimentação e no protesto das vítimas pediu também uma opção política radical. Esse era o limite dos bispos com o fim da ditadura. O canal de expressão dessa mobilização camponesa teria que ser outro. O nascimento do MST foi o meio de fazer fluir para o âmbito próprio da política o que já não tinha condições de se organizar e expressar plenamente no âmbito da igreja.
O MST se tornou de vários modos expressão do catolicismo militante, pelo apoio moral, logístico e material. Importou da igreja formas litúrgicas de manifestações de massa, expressões ampliadas das romarias da terra, variantes políticas das procissões religiosas. O MST não se move apenas com base em ideologia política, mas sobretudo com base na mística milenarista de um tempo de redenção dos pobres e oprimidos.
Porém a principal herança que o MST recebeu da igreja, e seguramente a mais interessante, é a da grande tradição do pensamento conservador, aquele modo de pensar o mundo que, no século 19, opôs-se ao liberalismo da revolução do século 18, como mostrou Robert Nisbet. No lugar do indivíduo fragmentário, a concepção de pessoa; no lugar da sociedade da sociabilidade abstrata e interesseira, a comunidade da sociabilidade solidária e afetiva. Os valores que norteiam o MST vêm desse estoque de idéias conservadoras: a propriedade da terra, o trabalho comunitário, a religião, a família, a comunidade. De fato, ele está muito longe do marxismo. E muito longe da independência: o MST até hoje não tem uma compreensão objetiva de seu lugar na história, justamente porque não tem autonomia.


José de Souza Martins, 66, é professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP. É autor de, entre outros livros, "O Sujeito Oculto - Ordem e transgressão na reforma agrária" (editora da UFRGS).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: José Arbex Jr.: Um movimento contra a escravidão

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.