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CARLOS HEITOR CONY
A Justiça é cega
RIO DE JANEIRO - Alguma coisa de ruim estava para acontecer na vida e
naquela manhã de Leopoldo Quintães, escrivão-substituto da 42� Vara
Cível da Comarca do Rio de Janeiro.
Como sempre fazia, chegou cedo ao
fórum na rua Dom Manuel, cumprimentou o porteiro e o ascensorista,
subiu ao 9� andar, cumprimentou o
faxineiro que espanava a pilha de
processos que seriam despachados, à
tarde, pelo juiz titular da vara, Hugo
Backer.
Leopoldo, que era chamado de Popoldo na intimidade, abriu a gaveta
de sua mesa e encontrou uma orelha
dentro dela. Uma orelha humana,
com um pouco de sangue coalhado,
cortada recentemente.
Num movimento de autodefesa,
mais do que de espanto, fechou rapidamente a gaveta, acendeu um cigarro, apesar do aviso na parede do
fundo, bem destacado: "É terminantemente proibido fumar neste recinto". Com o rabo do olho, examinou a
cara do faxineiro para ver se ele desconfiara de alguma coisa. O faxineiro
de nada desconfiara, mas Popoldo
desconfiou que precisava fazer algo
antes que os colegas chegassem.
Aproveitou o faxineiro ter ido embora, abriu a gaveta, tirou a orelha e
com ela procurou uma gaveta alheia
que estivesse aberta, dando sopa. Na
terceira tentativa, encontrou uma,
na mesa do escrevente-juramentado
Waldo (com W) Pinto Guimarães.
Botou a orelha lá dentro e foi acabar
o resto do cigarro no corredor, onde
não havia avisos proibindo fumar,
mas avisando que a Justiça é cega.
Meia hora depois chegou o Waldo.
Devia ter dormido mal, era boêmio,
freqüentava o bar da Cobal, no Leblon. Fingindo examinar o laudo pericial de um processo complicado, Popoldo esperava a reação do escrevente-juramentado quando descobrisse
a orelha.
Waldo custou a abri-la e, quando a
abriu, viu a orelha. Não deu um grito, tampouco se espantou. Pegou-a e
colocou-a na pilha dos processos que
o juiz titular deveria despachar à tarde. A Justiça é cega e a ela competia
fazer alguma coisa.
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