São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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Convivendo com a abominação

CANDIDO MENDES


Quis tirar ACM as castanhas do fogo da vergonha, na invocação da "razão de Estado", para escapar do ilícito


A trágica pantomima do Senado leva à interrogação sobre o clima da tolerância nacional com a insensibilidade dos donos do poder ou se é um povo que, de vez, se impermeabilizou em menos de uma década com a ida às ruas e sua boa cólera. É só porque nos falham, agora, Barbosa Lima ou Betinho? Ou o agridoce do podre nos impregnou, como a imensa Dinamarca sentida pelas narinas de Hamlet? Comece bem a poeta Adélia Prado, em Divinópolis, ou, enfim, tenhamos o início das escaramuças em Salvador.
Por entre retóricas e espaventos no caminho da Comissão de Ética, contamos com viradas de página na cultura política brasileira. Escapamos do torrencial de lágrimas do senador Arruda, que, à primeira hora, parecia ter devolvido seus pares ao sentimentalismo do perdão, de que se travestiu o compadrismo coriáceo e defensivo da Casa. Mas aí estava o relatório de Regina Borges, a imprensar o Senado no cara-a-cara com o seu próprio decoro.
O que ofende os parlamentares, no pântano da permissividade subjetiva, de outro lado, não pode agora anular a mais crassa dessas afrontas parlamentares, que é a contumácia da mentira, na boca dos legisladores. Aí está o inédito do senador Arruda, no monumental verso e reverso, literal, do que disse ao país, com toda a pompa do não valendo sim, que os anais do Senado registrarão com estarrecimento, mais que vexame.
O dilúvio de perplexidades da acareação exasperou a cultura do cinismo trazido a todos os vídeos do país. E quis tirar ACM as castanhas do fogo da vergonha, na invocação da "razão de Estado", para escapar do ilícito subsequente, de não castigar os violadores do painel, e por onde parece ainda sobreviver o ânimo de puni-lo, que mentir é pecadilho e já passou. O que o cacique baiano vai buscar no melhor Maquiavel desfaz-se diante de querer se preservar, a bem do Estado, a violação do voto secreto, para depois fazê-lo matéria de "voyeurismo" específico ou de atemorização dos inimigos, brandindo-lhes ao ouvido o que nem Zeus podia saber.
É vão o novo casuísmo da convivência com a abominação, de discutir-se se D. Regina foi objeto de uma consulta, de doce insinuação do veneno melífluo do senador Arruda ou ordem de quem a dá e sempre e como. A se querer o espírito da coisa, como reclama, na boa hermenêutica de chegar a algum lugar, o relator Saturnino, tudo se soma no fato objetivo: o da síndrome do medo, que envolvia todo o Senado, sob a presidência de ACM e, acima de tudo, o que leriam seus funcionários, sempre, como a vontade imperativa do semideus. O relatório final, para alívio do país, não deixou dúvidas quanto à convicção do pronunciamento, que restaura a confiança cívica na Câmara Alta.
São nossos, também, esses dias, de saber se o fortim baiano vai nos dar o teste da defesa da cultura popular, seus exus, suas lealdades nascidas de um inconsciente coletivo frente à cultura cívica que fez o Brasil da marcha dos cem mil, das Diretas-Já e do Fora-Collor.
Claro, Caetano, Bethânia e outros baianos não figuraram na primeira linha das divindades que responderam de corpo presente à pajelança consagratória no Palácio de Ondina, desta revanche baiana dos orixás-anões deixada, afinal, num panteão de matinê. Tal como começaram, numa temeridade de rasgar o véu do templo, os apupos ao totem nas ruas de Salvador, e se fazem clamor inequívoco pela sua condenação.
O primeiro entrevero de Brasília terminou, há dias, ainda sob uma sensação de anticlímax, pelo excesso do que se diz e contradiz, pelo entulho do deferencial e do retórico, ou pelos "vossas excelência" ou "pela ordem", invadindo o que se esperava do teatro grego das acareações. Por quanto tempo ainda o processo ficará na manchete, atentando-se a que o inconsciente coletivo exprime as suas verdades de imediato, ou se perde no pântano das preliminares?
Mais ainda, ao que parece definido, de uma lógica dos pares por fora da tarefa de oficiantes de uma exação popular. Pode ditá-la, por exemplo, a forra a ACM, no dar-se o troco do medo, e do acachapamento inicial inédito, do Senado ao seu ex-presidente neste último biênio. O entregar-se à auto-anulação das acusações mútuas, permitindo a perplexidade morna dos julgadores. Ou o carregar a sanha do sacrifício sobre os funcionários e não sobre as potestades. Ou, o que mais se teme, fechar-se o acordo esperto dos silêncios mútuos, entre carlistas e comparsas de Jader, numa trégua sobre a corrupção, estendida até o fim deste triste mandato.
O que mais importa, entretanto, é saber até onde as novas horas de esperança popular nasceram da estrita condenação de ACM pela mídia, no empenho de exprimir uma repulsa, abundantemente manifestada nas pesquisas. Antecipou-se a mídia à verdade de que é portadora? Ou a substituiu, no que parece ser a lei de ferro da sociedade global? O povo pensa o que a mídia quer quando o consulta, ou o que, afinal, essa quer, de vez, por ele?
O cheiro político desses dias foi além da primeira repulsão. Não recende à cinza, mas a esses anestésicos quase inodoros, de uma paralisia momentânea da velha e boa opinião pública. Pode não partir, como tanto temem os senadores, para um novo moralismo regenerador em 2002, não deixando pedra sobre pedra no Senado.
Ou desaparecer o escândalo na aposta da memória de girino em que vegeta este novo povo mediático. Ou reciclar-se, pasteurizado, por controle remoto, toda a velha indignação das ruas desaparecida, de morte morrida. Mas o jeito brasileiro de conviver com a abominação que chegue a maio tem ainda um preço: necrosa a consciência do país, quando não se tornar, de logo, ira cidadã.

Candido Mendes, 72, é presidente do "senior board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco e membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz.



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