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TENDÊNCIAS/DEBATES
O renascimento da agenda agrária
JOSÉ GRAZIANO DA SILVA
Os participantes da próxima conferência da FAO serão responsáveis por redefinir o papel da reforma agrária no novo momento da região
A 30� CONFERÊNCIA Regional
da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), que reunirá 33
países em Brasília, de 14 a 18 de abril,
carrega o ambicioso compromisso de
consolidar um novo consenso em torno do desenvolvimento rural da América Latina e do Caribe. Entre outros
assuntos, seus painéis vão discutir as
interseções entre os setores público e
privado para acelerar o fomento rural; os riscos e as oportunidades da
agroenergia; o combate à fome; o manejo sustentável da pecuária e as cruciais salvaguardas contra doenças
transfronteiriças. Mas, sem dúvida,
uma das maiores responsabilidades
dos seus participantes será reposicionar o papel da reforma agrária no novo momento da história regional.
Algo que não se via desde a década
de 1970 ocorreu na América Latina
entre 2003 e 2007: a economia regional cresceu em média quase 5%. Foram anos de expansão que fizeram
disparar uma espiral benigna em diferentes indicadores sociais. Seria ingênuo, porém, considerar que o terreno
foi definitivamente aplainado para
um ciclo sustentado de crescimento,
sem enxergar aí certas linhas de continuidade que o tempo não apagou. A
pobreza e a fome articulam esse fio
condutor feito de desequilíbrios que
unificam o passado e o presente e asseguram à região uma vaga incômoda
nos almanaques de avaliação econômica e social. A América Latina é a região mais desigual da Terra e a segunda mais violenta do planeta.
A Cepal estima em 71 milhões o número de indigentes na América Latina. Dentre eles, a FAO aponta para
mais de 52 milhões de pessoas encurraladas numa rotina de fome e insegurança alimentar. Populações indígenas -a exemplo dos negros no Brasil- são o principal estuário da desigualdade. Demograficamente dominantes em diversas economias e fortemente associadas à terra na maioria
delas, as comunidades nativas têm
frágeis laços com a cidadania e com o
crescimento. E um padrão de renda
entre 45% e 60% inferior à média.
No apogeu da agenda reformista,
nos anos 50 e 60, o que se preconizava
era garantir o abastecimento alimentar, expandir o mercado interno, redistribuir a riqueza e romper as amarras do poder oligárquico, abrindo espaços econômicos e institucionais para uma industrialização com desenvolvimento soberano. O que parece
distinguir a atual equação do desenvolvimento é que, aos desequilíbrios
do passado -para os quais a urbanização selvagem e sua contrapartida
agrícola não ofereceram respostas
adequadas-, vieram adicionar-se novas demandas. De certa forma, elas
deslocam a questão agrária para um
outro patamar de audiência pública.
E isso muda tudo.
A preservação do meio ambiente, a
produção da energia renovável, o manejo sustentável de reservas naturais,
a demanda por comida saudável e a
ocupação planejada do território não
são temas que aglutinem apenas os
sem-terra, os indígenas, os camponeses ou os agricultores familiares, que
formam um terço da população latino-americana. Seria frívolo, ademais,
considerá-los apenas um modismo
das elites. A verdade é que a maciça
geração de capacidade produtiva no
século 20 -e sua contrapartida predatória e poluente- reaproximou por
linhas tortas aquilo que nunca esteve
separado: a história humana e a história natural, o rural e o urbano. O saldo
dessa reconciliação se traduz na busca de ferramentas para redimir o passado e reinventar o futuro.
A elaboração de uma nova agenda
agrária é uma delas. O desafio da próxima Conferência Regional da FAO é
conferir em que medida a reforma
agrária tem respostas a adicionar às
demandas revigoradas da sociedade.
Trata-se de avançar num debate retomado em 2006, em Porto Alegre,
quando a FAO, com o apoio do governo brasileiro, realizou a Conferência
Internacional de Reforma Agrária e
Desenvolvimento Rural, 27 anos depois da Conferência Mundial de Roma sobre o tema.
Não se trata mais de analisar um
instrumento residual de luta contra a
pobreza, mas sim de um trunfo precioso num horizonte histórico em
acelerado processo de mutação de paradigmas econômicos e valores culturais. O desenvolvimento só poderá
ser chamado assim no século 21 se
combinar a velha racionalidade econômica com a harmonia social e o
equilíbrio ambiental. Trata-se de elevar a taxa de eficiência e o grau de
igualdade e ao mesmo tempo obter
maior equilíbrio nas relações entre a
natureza e civilização, a cidade e o
campo. A Conferência Regional da
FAO pode dar uma contribuição importante para ampliar esse horizonte
ao repor o debate sobre novos modelos de desenvolvimento agrário para o
nosso tempo e o nosso continente.
JOSÉ GRAZIANO DA SILVA, 58, é representante regional
da FAO para América Latina e Caribe. Foi ministro de Segurança Alimentar e Combate à Fome (2003-04).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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