São Paulo, segunda-feira, 16 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Senhores senadores

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

No apagar das luzes de um governo e no alvorecer de outro, há um divisor de águas para o sistema de saúde sendo decidido no Senado: o projeto 449, que altera a lei 8.080 e legaliza o uso de 25% dos hospitais universitários para atendimento diferenciado de pacientes privados e conveniados.
Usando o argumento de acrescer recursos (quando, na realidade, em alguns hospitais está se gastando mais para preparar e sustentar esse atendimento diferenciado do que ele gera de receita), oficializa-se um sistema de acesso e direitos desiguais, mesmo após a nação ter expressado, com clareza, sua vontade de mudança no sentido inverso.
No momento em que a demanda reprimida do setor público atinge seu auge, retira-se uma fatia relevante dos hospitais universitários -única possibilidade que o usuário do SUS (Sistema Único de Saúde) tem para solucionar problemas de maior complexidade, quando, para pacientes conveniados, há ociosidade nos hospitais privados.
Dentro desse contexto, já em prática, apesar de ilegal (Constituição e lei estadual n� 9.058), alguns professores universitários assalariados com recursos públicos usam as facilidades do hospital e, durante seu horário de trabalho, atendem pacientes privados e recebem honorários integrais. É, sem dúvida, justo e necessário que os trabalhadores de saúde ganhem mais, porém de forma transparente, com critérios definidos e aplicados a todos. A estratégia da segunda porta "mutatis mutandi" seria o mesmo que um juiz advogar privadamente na sua vara, ou um delegado na sua delegacia.
Legalizada a segunda porta nos hospitais universitários, ela não se restringirá, como não tem se restringido, a diferenças de acomodação. Há esperas, filas e tipos de acolhimento completamente diferenciados; há formas de ocultar o seu volume, muito acima dos 25%; há ampliações físicas dispendiosas, que contemplam apenas pacientes privados. E, acima disso, há problemas éticos intransponíveis para ensinar os novos médicos, nesse ambiente de acesso e direitos desiguais, no uso privado dos próprios públicos.
Se aprovada, essa prática se multiplicará rapidamente. A saúde se tornará, nos termos da proposta neoliberal pela qual estávamos incorretamente caminhando, uma mercadoria até no sistema público, e não um direito, como está na Constituição e na lei moral kantiana, dentro de cada um de nós. O nosso sonho de mudança desvanecerá antes de começar.


Está nas políticas públicas totalmente reformuladas a possibilidade do novo governo de atender as expectativas do povo


Por outro lado, não é real o argumento de que o faturamento dos hospitais públicos com a venda de serviços é indispensável para o funcionamento adequado dos mesmos. O exemplo do Hospital das Clínicas de São Paulo, o maior e melhor hospital universitário da América Latina, é ilustrativo, pois, no quinto ano de funcionamento dessa prática (1997), o faturamento da segunda porta para o hospital correspondeu a apenas 1,2% dos recursos públicos (orçamento mais o faturamento do SUS), e até hoje não chega a uma quantia significativa. Os exemplos do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, e do Sarah, em Brasília, mostram que é possível desenvolver padrões de excelência sem se curvar a essa distorção.
Existem alternativas legais para aumentar o orçamento desses hospitais atendendo a todos os usuários de forma igualitária. Refiro-me à utilização integral dos recursos do faturamento do SUS (pago com 73% de acréscimo) para o funcionamento do hospital, sem outras destinações por parte das fundações que os recebem; à aplicação da lei federal 9.656, de 3/6/98, para o ressarcimento das despesas com o atendimento dos usuários de planos de saúde -que equivalem a cerca de 15% dos pacientes internados como se fossem do SUS e atendidos pela mesma porta-; ou ainda ao término da prática imposta e inconstitucional do "teto" (limite de faturamento do SUS independentemente do número de atendimentos).
São formas éticas de aumentar verbas em quantidade várias vezes superior à gerada pela segunda porta.
Faço, pois, um apelo aos senhores senadores, para que rediscutam a questão, em nome dos 70% de brasileiros que não têm capacidade de pressão, que serão mais uma vez enganados por argumentos falaciosos e propositalmente complexos, apesar de terem pacífica, porém enfaticamente, pedido mudança com seu voto.
Aliás, está exatamente nas políticas públicas totalmente reformuladas a possibilidade do novo governo de atender as elevadas expectativas do sofrido e esperançoso povo brasileiro. Não devemos restringir essa possibilidade poucos dias antes de ele começar e demonstrar a ousadia de fazer a diferença.
Sei que mexo em vespeiro, mas socorro-me nas palavras de Sócrates durante seu julgamento, quando seus amigos o aconselhavam a ser politicamente correto: "Pode alguém perguntar: mas não será capaz, ó Sócrates, de nos deixar e viver calado e quieto?". E respondia ele mesmo: "A vida sem exame não é vida digna de um ser humano".

José Aristodemo Pinotti, 67, deputado federal eleito pelo PMDB-SP, é professor titular e chefe do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da USP. Foi deputado federal (1994-98), secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, secretário da saúde do município de São Paulo (2000), reitor da Unicamp (1982-1986) e presidente da Federação Internacional de Ginecologia (1986-1990).


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