São Paulo, quinta-feira, 10 de agosto de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Oportunidade histórica

ATHAYDE MOTTA e IRACEMA DANTAS

A SOCIEDADE brasileira, sob a liderança e o protagonismo dos movimentos sociais negros, tem uma oportunidade histórica para estender o princípio constitucional da igualdade política e jurídica a quem a República brasileira tem historicamente excluído: as populações negra e indígena. Um passo importante será dado caso o Congresso Nacional aprove os projetos da Lei de Cotas (n� 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (n� 3.198/2000).


As políticas afirmativas trazem a possibilidade de destruir de uma vez por todas o mito de que vivemos em uma democracia racial


Possíveis imperfeições de tais projetos não invalidam nem deslegitimam a realidade de exclusão e desigualdade existentes. Como tantas outras leis, precisam ser aperfeiçoadas e implementadas com vigor para que uma transformação de fato possa ocorrer. O projeto de cotas estabelece programas para a reserva de vagas para negros(as) e indígenas nas instituições federais de ensino superior. O Estatuto da Igualdade Racial propõe um conjunto de políticas públicas integradas, geradoras de oportunidades para cidadãs e cidadãos negros no serviço público e nas relações comerciais entre este e empresas privadas que exerçam políticas de ações afirmativas. Em vários lugares do mundo nos quais essas práticas têm ocorrido, os resultados foram a consolidação e a expansão dos direitos de cidadania e da própria democracia. As conseqüências das políticas de ação afirmativa são duas: a geração de oportunidades reais para grupos racialmente excluídos ao longo de nossa história e a revelação de que, infelizmente, o preconceito e a discriminação raciais são utilizados, todos os dias, por indivíduos e instituições, incluindo o Estado, contra as populações negra e indígena. Em uma análise realista, porém contrária aos interesses de quem só se beneficia das desigualdades, podemos afirmar que o preconceito e a discriminação raciais têm sido inerentes às relações sociais brasileiras. Ambos têm função fundamental para a acumulação de riqueza e poder por uma classe de origem européia que se perpetua em posições de privilégio enquanto manipula um discurso falsamente progressista de integração e solidariedade raciais que, de fato, reproduz e aprofunda o preconceito e a discriminação já existentes. O combate à exclusão social por meio da construção de serviços públicos universais de qualidade nos setores de educação, saúde e previdência, em especial a criação de empregos, tem sido um retumbante fracasso, por causa das limitações do próprio ideal universalista. Essas metas só poderão ser alcançadas pelo esforço sobre-humano de cidadãos e cidadãs de todos os grupos sociais e raciais contra os privilégios odiosos que, tradicionalmente, reduzem o princípio republicano da igualdade política e jurídica a apenas isto: um princípio vazio de sentido, valor e relevância para milhões de brasileiros e brasileiras. É preciso repetir, ainda que exaustivamente, que as políticas de ação afirmativa não criam identidades, só reconhecem aquelas que existem há séculos. Não criam direitos individuais, mas ampliam os direitos de cidadania para metade da população brasileira excluída da República. A adoção de identidades raciais não pode mesmo ser imposta e regulada pelo Estado, conforme comprovam o fracasso da categoria pardo e a celebração acrítica de uma mestiçagem de cunho ideológico conservador e excludente. Pelo contrário, políticas que geram oportunidades para grupos raciais com ricas histórias, tradições e conhecimento podem contribuir enormemente para que se alcance a justiça social. As políticas de ação afirmativa não têm por objetivo dar qualquer tipo de respaldo legal ou científico ao conceito de raça; elas apenas reconhecem as práticas sociais em que a cor da pele e determinados biotipos exercem papel fundamental nas relações entre brasileiros e brasileiras. Além disso, as políticas de ações afirmativas trazem para o país a possibilidade de destruir de uma vez por todas -e ainda que tardiamente- o mito de que vivemos em uma democracia racial. E também o perigoso tipo de racismo que esse mito inventou: abjeto, dissimulado, desumano e criminoso.
ATHAYDE MOTTA , 43, cientista social, é doutorando em antropologia no programa da diáspora africana, na Universidade do Texas, em Austin (EUA). IRACEMA DANTAS , 38, jornalista, é coordenadora do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e editora da revista "Democracia Viva".


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