São Paulo, segunda-feira, 08 de janeiro de 2001

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Em defesa do Ministério Público


Com a medida provisória, o chefe do governo disse, claramente, que algumas pessoas não podem ser investigadas


ROBERTO ROMANO

Nas graves horas da República, quando ignoramos para onde segue o navio do Estado e os pilotos brigam entre si, é bom consultar o saber adquirido no pretérito. A prudência, desprezada em tempos felizes, adquire força vital.
Acabamos de ver e ouvir, estupefatos, o presidente do Senado e seu adversário, importante dirigente partidário, trocando insultos, sem apreço pelo mandato que receberam. Um acusou o outro de rapinagem do tesouro público. Na réplica, assistimos o despudor: o parente da mais alta autoridade legislativa do país usou a corrupção para atingir alvos de empresa particular, a qual administra.
Otimista, abri a Folha no dia seguinte para ver se alguma atitude fora tomada pelo Congresso, pela Presidência da República ou pelo Supremo Tribunal Federal para punir os dois contendores pela quebra do decoro ou explícita admissão de crime. Nada.
Silêncio tremendo, como se tivéssemos diante de nós o funeral abjeto das leis. No universo oficial brasileiro, os responsáveis continuam silentes. Começo a desconfiar e me pergunto: "Será possível que nesta terra ninguém possui poderes para impor a norma legal?".
Recordei-me do Ministério Público. Desde a Constituição de 88, ele tem sido um vigia das prerrogativas cidadãs e adversário dos corruptos que infestam diversas instituições, em todos os níveis. Ainda otimista, esperei uma ação daquele setor no sentido de apurar as delações mútuas feitas no Senado.
Fui surpreendido por uma notícia que desmentiu qualquer esperança. O chefe de Estado brasileiro, em vez de se posicionar contra os indecentes, resolveu processar os procuradores, cuja missão constitucional é levar a lei para quem pratica delitos, sobretudo nos altos cargos. A notícia é aziaga não apenas no relativo ao Ministério Público, mas pelo futuro do Brasil. Com semelhante processo, o chefe do governo disse, claramente, que algumas pessoas não podem ser investigadas.
Nas últimas horas século 20 fomos jogados na era absolutista, em que imperava a irresponsabilidade do governante supremo e de sua grei. Grave retrocesso para uma administração que assumiu o mando prometendo lutar contra os desvios éticos e combater a corrupção em nossa terra. A medida provisória que estipula uma penalidade financeira contra os promotores caso suas denúncias não sejam aceitas pelos pretórios é, em si mesma, um golpe contra a Carta Magna (configurando um golpe de Estado).
Assegura-se nela a intolerável promoção de certos grupos ao estatuto de intocáveis. Esse já era o objetivo da lei da mordaça, recusada pelo Congresso Nacional. O fim daquele projeto era calar os procuradores da República e a imprensa, impedindo toda oposição. Perdida a causa no Parlamento, o Poder Executivo tenta, agora por meio da ameaça financeira, dobrar a espinha da sociedade civil.
O exemplo do Peru deve alertar nossas autoridades judiciárias. Sob pretexto de extinguir mazelas do referido Poder, Fujimori o emasculou. O Executivo andino instaurou uma ditadura cujo ápice deu-se com o estouro de hedionda corrupção oficial, produzida graças ao medo e ao silêncio impostos à sociedade. A democracia tem problemas, mas ela é o regime ideal de quem não se rebaixa ao estatuto de rebanho dirigido por pretensos infalíveis, militares ou universitários. Sem imprensa livre e desprovido de instituições fortes (como é o caso do Judiciário e do Ministério Público), um povo se conforma com o assalto aos cofres coletivos, assume exemplos perversos, louva a rapinagem indiscriminada.
E só confia no bandido que lidera a gangue mais próxima. Radicalizado este aspecto, é impossível a governabilidade. Se o Ministério Público não investiga livremente os que devem guardar as riquezas nacionais, ele também nada pode fazer contra os que subtraem os bens privados. O governo não ponderou o risco: indo contra os promotores, ele subverte os ideais da vida civil.
Santo Agostinho diz que o Estado sem valores não se diferencia das quadrilhas. Esperemos que a inteligente prudência dos juízes e do próprio governo afaste tal perigo, consubstanciado na medida provisória n� 2.088-35, anunciada em 27 de dezembro último, e a revogue.


Roberto Romano, 54, é professor de ética e de filosofia política na Unicamp.




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