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BORIS FAUSTO
A bolinha
gelada
Recordar é viver ou reviver.
Diante das cenas vergonhosas
ocorridas no estádio de São Januário,
que contribuem para levar o futebol
brasileiro a um poço sem fundo por
culpa de seus "dirigentes", sou tentado a dar um pequeno mergulho no
passado. Faço isso não para opor "os
velhos bons tempos" aos maus tempos atuais, como a memória seletiva
nos convida a fazer, mesmo porque os
velhos tempos não eram assim tão belos, embora envoltos em um saudosismo confortador.
Tentemos nos transportar a uma
época em que o Campeonato Brasileiro de Futebol não era jogado pelos clubes, mas pelas seleções. Esse critério
levava ao ponto de fervura a rivalidade
entre paulistas e cariocas, tanto mais
que os jogadores circulavam pouco,
em comparação com a alta rotatividade dos dias de hoje. Apesar de a profissionalização já ter sido implantada,
havia ainda jogadores que a torcida
identificava com seus clubes, assim
como havia jogadores "tipicamente"
paulistas ou cariocas.
Sem que ocorressem variações -os
mais antigos por certo lembram-se
disso-, o título era decidido entre as
duas grandes seleções, em uma melhor de três pontos, segundo a pontuação tradicional.
Por alguns anos, na década de 40, até
a inauguração do Maracanã, em 1950,
jogava-se uma partida no Pacaembu,
uma em São Januário e quase sempre
uma terceira, em um dos dois locais
escolhidos por sorteio. É bom lembrar
que uma coisa era jogar em segurança
no charmoso Pacaembu; bem outra
era jogar sob pressões de todo tipo em
São Januário.
Para que não me acusem de excessivo bairrismo (aceito a qualificação,
mas sem o adjetivo), lembro que em
São Januário os juízes facciosos se tornavam mais facciosos e ocorriam cenas edificantes como aquela em que
um delegado de polícia chegou a
ameaçar o time paulista, de revólver
em punho. Por isso e quem sabe por
que os cariocas fossem melhores, ganhar no estádio do Vasco uma partida
final era uma heróica façanha, cantada
em prosa e verso pela mídia paulista.
Um mistério cercava o sorteio para o
terceiro jogo. Inevitavelmente, ele
apontava sempre São Januário. Na
época, as explicações para esse fato variavam bastante. Os antepassados da
velhinha de Taubaté acreditavam que
os maus fados perseguiam os paulistas
e só rezas muito fortes poderiam quebrar essa sina. Os mais céticos -em
grande maioria- buscavam explicações terrenas.
Uma delas me foi lembrada pelo ministro José Gregori, enquanto se desenrolavam as cenas contristantes de
há pouco mais de uma semana. O sorteio, realizado por meio de bolinhas
em princípio neutras, indicava sempre o palco carioca porque a bolinha
conveniente ficava na geladeira e era
fácil identificá-la por mãos interessadas.
Não sei se a explicação "bene trovata" é verdadeira. Os antropólogos talvez nos dissessem que o mito -verdade simbólica- é mais verdadeiro
do que os simples fatos. Seja como for,
os velhos paulistas devem achar
atraente essa verdade mítica, pois ela
reforça o estereótipo, recortando a seriedade ingênua de São Paulo de um
lado e a esperta malandragem carioca
de outro.
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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