São Paulo, segunda-feira, 08 de janeiro de 2001

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BORIS FAUSTO
A bolinha gelada

Recordar é viver ou reviver. Diante das cenas vergonhosas ocorridas no estádio de São Januário, que contribuem para levar o futebol brasileiro a um poço sem fundo por culpa de seus "dirigentes", sou tentado a dar um pequeno mergulho no passado. Faço isso não para opor "os velhos bons tempos" aos maus tempos atuais, como a memória seletiva nos convida a fazer, mesmo porque os velhos tempos não eram assim tão belos, embora envoltos em um saudosismo confortador.
Tentemos nos transportar a uma época em que o Campeonato Brasileiro de Futebol não era jogado pelos clubes, mas pelas seleções. Esse critério levava ao ponto de fervura a rivalidade entre paulistas e cariocas, tanto mais que os jogadores circulavam pouco, em comparação com a alta rotatividade dos dias de hoje. Apesar de a profissionalização já ter sido implantada, havia ainda jogadores que a torcida identificava com seus clubes, assim como havia jogadores "tipicamente" paulistas ou cariocas.
Sem que ocorressem variações -os mais antigos por certo lembram-se disso-, o título era decidido entre as duas grandes seleções, em uma melhor de três pontos, segundo a pontuação tradicional.
Por alguns anos, na década de 40, até a inauguração do Maracanã, em 1950, jogava-se uma partida no Pacaembu, uma em São Januário e quase sempre uma terceira, em um dos dois locais escolhidos por sorteio. É bom lembrar que uma coisa era jogar em segurança no charmoso Pacaembu; bem outra era jogar sob pressões de todo tipo em São Januário.
Para que não me acusem de excessivo bairrismo (aceito a qualificação, mas sem o adjetivo), lembro que em São Januário os juízes facciosos se tornavam mais facciosos e ocorriam cenas edificantes como aquela em que um delegado de polícia chegou a ameaçar o time paulista, de revólver em punho. Por isso e quem sabe por que os cariocas fossem melhores, ganhar no estádio do Vasco uma partida final era uma heróica façanha, cantada em prosa e verso pela mídia paulista.
Um mistério cercava o sorteio para o terceiro jogo. Inevitavelmente, ele apontava sempre São Januário. Na época, as explicações para esse fato variavam bastante. Os antepassados da velhinha de Taubaté acreditavam que os maus fados perseguiam os paulistas e só rezas muito fortes poderiam quebrar essa sina. Os mais céticos -em grande maioria- buscavam explicações terrenas.
Uma delas me foi lembrada pelo ministro José Gregori, enquanto se desenrolavam as cenas contristantes de há pouco mais de uma semana. O sorteio, realizado por meio de bolinhas em princípio neutras, indicava sempre o palco carioca porque a bolinha conveniente ficava na geladeira e era fácil identificá-la por mãos interessadas.
Não sei se a explicação "bene trovata" é verdadeira. Os antropólogos talvez nos dissessem que o mito -verdade simbólica- é mais verdadeiro do que os simples fatos. Seja como for, os velhos paulistas devem achar atraente essa verdade mítica, pois ela reforça o estereótipo, recortando a seriedade ingênua de São Paulo de um lado e a esperta malandragem carioca de outro.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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