São Paulo, sábado, 21 de maio de 2005

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IRAQUE SOB TUTELA

Governo pró-ocidental afirma que a responsabilidade pelo conflito da década de 80 foi de Saddam

Iraque admite culpa na guerra com o Irã

ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT"

Dezessete anos após um conflito que se arrastou por oito anos e matou cerca de 1,5 milhão de jovens, veio a revelação: a guerra foi ganha pelo Irã.
Durante toda a luta entre as forças invasoras do Iraque, sob o comando de Saddam Hussein -encorajado, é claro, pelos Estados Unidos- e as tentativas desesperadas e suicidas feitas pela Revolução Islâmica iraniana de defender seu país, o aiatolá Khomeini insistiu que o mundo precisava e devia reconhecer que o agressor era de fato Saddam. Agora, finalmente, o Iraque o reconheceu.
O novo governo xiita do Iraque -pelo qual, é claro, devemos agradecer aos Estados Unidos- admitiu tranqüilamente que o Iraque foi o agressor, sim, que a culpa foi de Saddam Hussein. Ele foi o único responsável. Os iraquianos foram os bandidos da história, e os iranianos, os mocinhos.
Foi uma guerra de espelhos. Ao longo de toda a Guerra entre Irã e Iraque, de 1980-88 -na qual Saddam, como é sabido, usou gás letal em massa pela primeira vez desde um conflito igualmente épico, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918)-, nós, ocidentais, apoiamos Saddam. Nós lhe fornecemos armas, fotos aéreas, gás -principalmente a Alemanha, é claro, mas também os EUA-, tudo pago por aquela famosa democracia do golfo e aliada dos EUA, a Arábia Saudita.
No início da guerra, Saddam Hussein chamou sua agressão de "a Guerra Vendaval". Ela iria, supostamente, pulverizar a recém-nascida, ingênua e expansionista República Islâmica -foi por isso, aliás, que o Ocidente apoiou Saddam -e derrubar Khomeini do poder, possivelmente até mesmo reinstalando o xá moribundo em seu trono.
Demonstrando possuir maior senso de realidade, os iranianos chamaram o conflito de "a Guerra Imposta", que foi o que ela de fato foi. Eles imploraram às Nações Unidas para que condenassem Saddam. Mas o que ganharam em troca foram pedidos por moderação, o mesmo tipo de coisa que o Departamento de Estado dos EUA emprega em outras áreas "delicadas", onde aliados-chave dos Estados Unidos correm riscos -vejam-se os casos de Israel/Palestina e do Uzbequistão.
O fato de o maior agressor de todos, Saddam Hussein Tikriti, agora estar sendo tratado com desprezo verdadeiramente árabe constitui apenas parte da ironia. Que ele seja mostrado na primeira página do jornal sensacionalista e popular britânico, "The Sun", de cueca samba-canção, com certeza é menos degradante para o povo que já foi seu do que os iraquianos serem empilhados, nus, no chão da prisão de Abu Ghraib por americanos, ou obrigados a usar calcinhas femininas, mordidos por cães ou simplesmente abatidos a tiros em barreiras policiais por tropas americanas, ou então despedaçados por homens-bomba. Para usar o psicojargão em voga, os iraquianos "já passaram adiante".
Não, eles não precisam "encerrar a questão". A maioria deles não se importa se Saddam vive ou morre. Eles querem segurança, luz elétrica, um Estado real. E ainda não o têm.
É típico de nós, ocidentais, acharmos que Saddam ainda seja nosso verdadeiro inimigo, num momento em que o Iraque é capaz de produzir homens-bomba e um exército -provavelmente o Exército iraquiano original de Saddam - para atacar soldados americanos e britânicos. Sim, Saddam foi culpado. Ele foi a razão de nossa invasão ilegal do Iraque. Ou será que não foi? A coisa está ficando cansativa.
Armas de destruição em massa. Vínculos com o 11 de Setembro. Avisos com antecedência de 45 minutos. Talvez não. Mas agora já podemos dizer o que nunca antes dissemos: invadimos o Iraque ilegalmente porque -dentro em breve este será o novo "leitmotiv"- Saddam invadiu o Irã ilegalmente.
Poderia a coisa ficar melhor do que isso?


Tradução de Clara Allain

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