São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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GEOPOLÍTICA

Como foi anunciado, sistema de defesa antimísseis dos EUA põe fim ao conceito de "destruição mútua assegurada"
Escudo pode gerar desequilíbrio estratégico

Reuters
George W. Bush acena ao deixar o avião presidencial, em Washigton; ao lado do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, ele defende a criação do escudo antimísseis


DA REDAÇÃO

Na última terça-feira, após um encontro com o secretário-adjunto de Estado dos EUA James Kelly, autoridades chinesas afirmaram não estarem convencidas de que o projeto americano de construção de um sistema de defesa antimísseis favoreça a paz mundial e reiteraram sua "constante oposição" ao plano.
A China teme que o sistema possa ser usado contra ela por causa de disputas envolvendo a "Província rebelde" de Taiwan. Para Pequim, o projeto, que é ardorosamente defendido pelo secretário da Defesa dos EUA -Donald Rumsfeld- e pelo presidente George W. Bush, colocaria em risco o equilíbrio geopolítico mundial e provocaria uma nova corrida armamentista. Em tese, os chineses têm razão.
Se os EUA construíssem um sistema capaz de destruir mísseis que se aproximassem de seu território, o delicado equilíbrio geoestratégico que permitiu que as potências nucleares não se destruíssem mutuamente nos últimos 30 anos estaria morto.
"O equilíbrio existente desde os anos 70 baseia-se no fato de que qualquer potência nuclear sabe que, se atacar outro país que tenha armas nucleares, ela também será destruída, pois não terá como defender-se", explicou à Folha Charles Tilly, professor na Universidade Columbia e autor de, entre outros, "From Contention to Democracy" (da contenção à democracia).

Vulnerabilidade deliberada
Até hoje, uma política que, aparentemente, contradiz o bom senso evitou uma guerra nuclear. Afinal, em vez de construir um escudo defensivo contra ataques inimigos, as potências nucleares, lideradas pelos EUA e pela Rússia (ou URSS até 1991), mantiveram-se deliberadamente vulneráveis.
Confiando na força dissuasiva do conceito de "destruição mútua assegurada", os EUA e a URSS firmaram o Tratado Antimísseis Balísticos (TAB) em 1972. Ora, se o país que tem o maior arsenal nuclear do mundo no pós-Guerra Fria puder lançar um ataque, sabendo que poderá defender-se da retaliação de outros Estados -sejam eles "irresponsáveis" ou não-, haverá um desequilíbrio geoestratégico e geopolítico.
"Não há dúvida de que, com sua proposta, os EUA estão essencialmente rejeitando os princípios do TAB, que proíbe a construção de um sistema nacional de defesa antimísseis. Além disso, não há nenhum país que possa ter simultaneamente a capacidade e a intenção de atacar os EUA com mísseis, mesmo que, potencialmente, isso fosse possível", disse Tilly.

Tecnologia insuficiente
Davis Bobrow, do Centro Ridgway para Estudos sobre Segurança Internacional (EUA), lembrou que o "sistema proposto por Bush e Rumsfeld só desestabilizaria o equilíbrio nuclear se fosse tecnicamente confiável e inteiramente implementado e operacional".
Isso será bastante complexo, pois, para Rumsfeld, nem mesmo estações de defesa espaciais girando em torno da Terra, que nos remetem a filmes de George Lucas ou a narrativas de H. G. Wells, estão descartadas.
Na verdade, o sistema, tal qual foi proposto inicialmente (sem detalhes técnicos ou logísticos), tem pouca chance de sair do papel. Além de seu custo proibitivo, o projeto carece essencialmente de avanços tecnológicos. "Jamais teremos a tecnologia necessária para desenvolver o escudo antimísseis em menos de 10 ou 20 anos, porém nem isso é certo", sustentou Bobrow.
Tilly foi ainda mais claro: "Os EUA não têm a tecnologia para produzir o escudo que foi anunciado. Trata-se de uma iniciativa para agradar à indústria bélica e aos militares. É uma questão doméstica que tem complexas repercussões internacionais".
Joseph Nye, ex-presidente do Conselho de Segurança Nacional dos EUA e autor de "Bound to Lead: The Changing Nature of American Power" (fadado a liderar: a transformação do poder americano), acredita que, na realidade, o sistema antimísseis que será finalmente implementado venha a ser "limitado demais para pôr fim ao conceito de destruição mútua assegurada".

"Soft power"
Pode-se concluir, portanto, que Bush está tentando vender à comunidade internacional algo que sabe que não será capaz de construir. Resta esperar que, talvez em razão da forte oposição internacional a seu plano, ele passe a privilegiar uma posição menos unilateral e, assim, mais sábia.
Afinal, a influência americana sobre a cena internacional é menos controversa quando apoiada no "soft power", conceito criado por Nye para descrever a força internacional dos EUA que advém de sua influência cultural e ideológica sobre o resto do planeta.
"Quanto ao "soft power", não há dúvida de que os EUA alcançaram níveis de influência internacional jamais vistos. Basta observar que o cinema americano atinge mercados em todo o planeta e que suas redes de fast food e seus programas de computador são um sucesso mundial", afirmou Nye, que é reitor da Kennedy School of Government da Universidade Harvard (EUA).
É verdade, no entanto, que a influência cultural, ideológica e econômica dos EUA pode não persuadir ditadores, como o iraquiano Saddam Hussein, a abandonar seus programas nucleares e a destruir suas armas. Mas também é indiscutível que o escudo antimísseis, mesmo que totalmente operacional, não protegeria os americanos de um possível ataque com armas de destruição em massa.
"Há inúmeras maneiras sutis de transportar armas muito poderosas atualmente, como numa maleta. Assim, parece-me um programa estúpido, já que só serve para agravar a tensão internacional e poderá criar uma nova corrida armamentista", analisou Ole Holsti, cientista político, especialista em relações internacionais e professor na Universidade Duke (EUA). (MÁRCIO SENNE DE MORAES)


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