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GEOPOLÍTICA
Derrotas na ONU evidenciam que o unilateralismo de Washington não mais é automaticamente aceito por seus aliados
EUA perdem as rédeas da diplomacia
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
As recentes derrotas dos EUA
em eleições para cadeiras na Comissão de Direitos Humanos e no
escritório de monitoramento de
drogas, ambos da Organização
das Nações Unidas, evidenciaram
uma nova tendência na cena internacional: o unilateralismo de
Washington não mais é automaticamente aceito por seus aliados.
Que a administração americana
seja criticada em fóruns internacionais dominados por Cuba ou
pela China não é nenhuma surpresa, talvez seja até motivo de júbilo nos corredores da Casa Branca, mas que os "amigos e aliados"
europeus tomem uma atitude semelhante, mesmo que implicitamente, é uma novidade.
"Creio que alguns esforços unilaterais e desajeitados feitos pela
administração de George W.
Bush tenham levado outros países, particularmente na Europa, a
lembrarem aos EUA que o unilateralismo não é nada popular em
relações diplomáticas", analisou
para a Folha Joseph Nye, reitor da
Kennedy School of Government
da Universidade Harvard e um
dos pais da escola neo-realista de
relações internacionais.
Segundo um diplomata que trabalha na Comissão de Direitos
Humanos, que não quis ser identificado, os EUA tentaram pressionar a Suécia a abandonar a disputa por uma das três vagas que
cabiam aos países industrializados, porém receberam um não
como resposta. Resultado: a França, a Áustria e a Suécia foram eleitas, e os EUA perderam uma cadeira que detinham ininterruptamente desde 1947.
Inúmeros fatores contribuíram
para essa derrota. A nova administração americana se recusou a
assinar o Protocolo de Kyoto, que
estabelece metas para o combate
do efeito estufa, enterrando oito
anos de trabalho de 186 países.
O anúncio da supressão de subvenções públicas para associações
internacionais de planejamento
familiar, sobretudo as que lutam
contra a propagação da Aids na
África, com o pretexto de que elas
promoviam o aborto, foi feito por
Bush logo que assumiu o poder.
Ele também sabotou os esforços
feitos por seu predecessor, Bill
Clinton, para reaproximar as
duas Coréias e anunciou que levaria adiante seu projeto de construir um sistema de defesa antimísseis, ao qual se opõem, além
da Rússia e da China, alguns aliados europeus dos EUA.
Além disso, sob influência do
poderoso lobby de sua indústria
farmacêutica, Washington tentou
impedir que medicamentos genéricos para tratamento da Aids pudessem ser fabricados por países
menos abastados. Há ainda a polêmica dos pagamentos atrasados
à ONU, cerca de US$ 1 bilhão, que
parecia resolvida após acordo firmado no fim do governo Clinton,
mas que continua sem solução.
Realinhamento diplomático
Essas são algumas das razões
concretas do recente isolamento
diplomático americano. Contudo, como ressaltou Charles Tilly,
especialista em relações internacionais da Universidade Columbia, a questão é bem mais ampla.
Afinal, a tendência atual pode representar o início de uma nova fase na cena internacional.
"Além da desilusão em relação à
liderança americana, que foi caracterizada por seu unilateralismo, o mundo vive um processo
que parece ser o início da segunda
fase da reorganização geopolítica
mundial. A primeira teve início
com o colapso dos regimes comunistas e foi dominada pelos EUA,
a segunda terá vários centros de
poder", explicou Tilly.
Assim, uma fase de realinhamento diplomático está em curso,
e a Europa percebe que pode desempenhar um papel crucial na
cena internacional. Os esforços da
União Européia (UE), como o
provável estabelecimento de relações diplomáticas com a stalinista
Coréia do Norte, ainda carecem
de definição e coesão, entretanto
já se fazem sentir.
"A UE tomou consciência de
que pode pesar diplomaticamente num mundo multipolar. Ora,
essa multipolaridade dependerá
muito do que ela fizer. Por isso as
iniciativas atuais do bloco ainda
são difusas, no entanto elas já
existem e devem multiplicar-se a
médio e longo prazos", explicou
Anne-Marie Le Gloannec, diretora-adjunta do Centro Marc Bloch,
um instituto de pesquisas franco-alemão situado em Berlim.
Embora exista, essa tendência
ainda é incipiente. Além disso, estamos longe de um mundo em
que os EUA seriam um Estado-pária. Afinal, o capital americano,
sob todas as suas formas (até mesmo cultural, como evidencia o poder de Hollywood), está expandindo sua influência pelo planeta.
Poder do capital
Para Tilly, o fenômeno tem explicação: o poder do capital vem
aumentando relativamente mais
do que qualquer outra coisa nos
EUA, inclusive "acima do desejo
de supremacia diplomática".
"A administração de Bush acelerou uma tendência que já existia
desde o fim da URSS (1991), pois
favorece ainda mais o capital internacional. De modo público ou
privado, os EUA buscam controlar o petróleo existente em qualquer parte do mundo, como no
mar Cáspio (Ásia), e abrir novas
frentes de comércio, principalmente na China", sustentou Tilly.
"Influenciado por fatores internos, Bush privilegiou uma humilhante saída diplomática para a
crise com Pequim (em torno do
avião de espionagem da Marinha
que pousou no sul da China após
uma colisão com um caça chinês),
já que não queria pôr em risco a
entrada e a consolidação de indústrias e capitais americanos na
China, que é o maior mercado do
mundo", acrescentou.
A lição que a nova administração americana deve tirar dessa fase, certamente passageira, de isolamento internacional é a de que,
atualmente, não se pode confundir influência com poder. Por falta de tato ou de experiência diplomática, Bush tem tomado medidas unilaterais em política externa
que explicitam, voluntária ou involuntariamente, um desejo de
poder incontestável.
Contudo o mundo está em fase
de transformação, e, na cena internacional, nem os "amigos e
aliados" tradicionais dos EUA
nem aqueles que Washington
classifica de "Estados irresponsáveis" aceitam mais o unilateralismo da administração americana.
Num debate antes de sua eleição
para presidente, Bush prometeu
pôr fim à arrogância diplomática
dos EUA; o resto do planeta parece ter cansado de esperar que ele
cumpra sua promessa.
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