São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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GEOPOLÍTICA

Derrotas na ONU evidenciam que o unilateralismo de Washington não mais é automaticamente aceito por seus aliados

EUA perdem as rédeas da diplomacia

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

As recentes derrotas dos EUA em eleições para cadeiras na Comissão de Direitos Humanos e no escritório de monitoramento de drogas, ambos da Organização das Nações Unidas, evidenciaram uma nova tendência na cena internacional: o unilateralismo de Washington não mais é automaticamente aceito por seus aliados.
Que a administração americana seja criticada em fóruns internacionais dominados por Cuba ou pela China não é nenhuma surpresa, talvez seja até motivo de júbilo nos corredores da Casa Branca, mas que os "amigos e aliados" europeus tomem uma atitude semelhante, mesmo que implicitamente, é uma novidade.
"Creio que alguns esforços unilaterais e desajeitados feitos pela administração de George W. Bush tenham levado outros países, particularmente na Europa, a lembrarem aos EUA que o unilateralismo não é nada popular em relações diplomáticas", analisou para a Folha Joseph Nye, reitor da Kennedy School of Government da Universidade Harvard e um dos pais da escola neo-realista de relações internacionais.
Segundo um diplomata que trabalha na Comissão de Direitos Humanos, que não quis ser identificado, os EUA tentaram pressionar a Suécia a abandonar a disputa por uma das três vagas que cabiam aos países industrializados, porém receberam um não como resposta. Resultado: a França, a Áustria e a Suécia foram eleitas, e os EUA perderam uma cadeira que detinham ininterruptamente desde 1947.
Inúmeros fatores contribuíram para essa derrota. A nova administração americana se recusou a assinar o Protocolo de Kyoto, que estabelece metas para o combate do efeito estufa, enterrando oito anos de trabalho de 186 países.
O anúncio da supressão de subvenções públicas para associações internacionais de planejamento familiar, sobretudo as que lutam contra a propagação da Aids na África, com o pretexto de que elas promoviam o aborto, foi feito por Bush logo que assumiu o poder.
Ele também sabotou os esforços feitos por seu predecessor, Bill Clinton, para reaproximar as duas Coréias e anunciou que levaria adiante seu projeto de construir um sistema de defesa antimísseis, ao qual se opõem, além da Rússia e da China, alguns aliados europeus dos EUA.
Além disso, sob influência do poderoso lobby de sua indústria farmacêutica, Washington tentou impedir que medicamentos genéricos para tratamento da Aids pudessem ser fabricados por países menos abastados. Há ainda a polêmica dos pagamentos atrasados à ONU, cerca de US$ 1 bilhão, que parecia resolvida após acordo firmado no fim do governo Clinton, mas que continua sem solução.

Realinhamento diplomático
Essas são algumas das razões concretas do recente isolamento diplomático americano. Contudo, como ressaltou Charles Tilly, especialista em relações internacionais da Universidade Columbia, a questão é bem mais ampla. Afinal, a tendência atual pode representar o início de uma nova fase na cena internacional.
"Além da desilusão em relação à liderança americana, que foi caracterizada por seu unilateralismo, o mundo vive um processo que parece ser o início da segunda fase da reorganização geopolítica mundial. A primeira teve início com o colapso dos regimes comunistas e foi dominada pelos EUA, a segunda terá vários centros de poder", explicou Tilly.
Assim, uma fase de realinhamento diplomático está em curso, e a Europa percebe que pode desempenhar um papel crucial na cena internacional. Os esforços da União Européia (UE), como o provável estabelecimento de relações diplomáticas com a stalinista Coréia do Norte, ainda carecem de definição e coesão, entretanto já se fazem sentir.
"A UE tomou consciência de que pode pesar diplomaticamente num mundo multipolar. Ora, essa multipolaridade dependerá muito do que ela fizer. Por isso as iniciativas atuais do bloco ainda são difusas, no entanto elas já existem e devem multiplicar-se a médio e longo prazos", explicou Anne-Marie Le Gloannec, diretora-adjunta do Centro Marc Bloch, um instituto de pesquisas franco-alemão situado em Berlim.
Embora exista, essa tendência ainda é incipiente. Além disso, estamos longe de um mundo em que os EUA seriam um Estado-pária. Afinal, o capital americano, sob todas as suas formas (até mesmo cultural, como evidencia o poder de Hollywood), está expandindo sua influência pelo planeta.

Poder do capital
Para Tilly, o fenômeno tem explicação: o poder do capital vem aumentando relativamente mais do que qualquer outra coisa nos EUA, inclusive "acima do desejo de supremacia diplomática".
"A administração de Bush acelerou uma tendência que já existia desde o fim da URSS (1991), pois favorece ainda mais o capital internacional. De modo público ou privado, os EUA buscam controlar o petróleo existente em qualquer parte do mundo, como no mar Cáspio (Ásia), e abrir novas frentes de comércio, principalmente na China", sustentou Tilly.
"Influenciado por fatores internos, Bush privilegiou uma humilhante saída diplomática para a crise com Pequim (em torno do avião de espionagem da Marinha que pousou no sul da China após uma colisão com um caça chinês), já que não queria pôr em risco a entrada e a consolidação de indústrias e capitais americanos na China, que é o maior mercado do mundo", acrescentou.
A lição que a nova administração americana deve tirar dessa fase, certamente passageira, de isolamento internacional é a de que, atualmente, não se pode confundir influência com poder. Por falta de tato ou de experiência diplomática, Bush tem tomado medidas unilaterais em política externa que explicitam, voluntária ou involuntariamente, um desejo de poder incontestável.
Contudo o mundo está em fase de transformação, e, na cena internacional, nem os "amigos e aliados" tradicionais dos EUA nem aqueles que Washington classifica de "Estados irresponsáveis" aceitam mais o unilateralismo da administração americana.
Num debate antes de sua eleição para presidente, Bush prometeu pôr fim à arrogância diplomática dos EUA; o resto do planeta parece ter cansado de esperar que ele cumpra sua promessa.


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