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Só a história para fazer um julgamento mais racional sobre dirigente cubano
Ditador comunista, que associou o extraordinário e inegável carisma a uma inquietação permanente, é santo ou demônio, sem meios termos, de acordo com posição ideológica de quem o julga
CLÓVIS ROSSI
DO CONSELHO EDITORIAL
Começou ontem, com a renúncia de Fidel Alejandro Castro Ruz, aos 81 anos, a contagem regressiva para se saber se
vingará uma de suas frases
mais célebres: "A história me
absolverá".
Só mesmo a história para
emitir um julgamento menos
emocional de quem era o governante há mais tempo no poder no planeta: 49 anos. Fidel é
santo ou demônio, sem meios
termos, de acordo a posição
ideológica de quem o julga.
A frase completa é algo mais
longa: "Podem condenar-me,
não importa, a história me absolverá". Foi pronunciada por
Fidel como advogado dele próprio, durante o julgamento, em
1953, dos militantes que tentaram ocupar o quartel Moncada,
um dos principais do Exército
do ditador Fulgencio Batista.
A primeira parte da frase
cumpriu-se: Fidel foi condenado a 15 anos de prisão. Anistiado em 1955, tratou de apressar
a absolvição pela história, que a
seu ver seria representada pela
derrubada de Batista.
Cumpriu-se igualmente a segunda parte. Mas começou então um novo julgamento, sobre
os méritos e os defeitos da revolução e, por extensão, do homem que a encarnava.
Comunista desde quando? É
comunista desde sempre e escondeu o fato para não alienar
aliados do movimento anti-Batista ou é apenas um libertário?
O seu primeiro documento
político sugere a segunda opção. O manifesto com que ele e
seus 165 homens mal equipados se lançaram ao ataque ao
Moncada é pouco radical. Pedia
até a volta à Constituição de
1940, liberal como quase todas
as Cartas latino-americanas.
O suficiente para justificar a
análise que fez o historiador
britânico Hugh Thomas, em
seu livro "A Revolução Cubana": "Castro embarcou no ataque ao Moncada sem uma ideologia verdadeiramente elaborada, somente com o anseio de
depor o tirano Batista e de acabar com a corrompida sociedade da velha Cuba".
Até depois da vitória, na sua
primeira visita aos EUA (maio
de 1959), o tom era similar: "Digo de maneira clara e definitiva
que não somos comunistas".
Comunista tardio
Só assumiria o comunismo
no fim de 1961. A decisão foi tomada praticamente três anos
depois de vitoriosa a revolução
e de uma sucessão de atos hostis por parte do governo norte-americano, como o bloqueio
comercial e a frustrada tentativa de invasão de Cuba por contra-revolucionários financiados e treinados pelos EUA.
Paradoxo da história: um comunista tardio tornou-se, com
o fim da URSS e do charme do
marxismo, no "último dinossauro marxista", na definição
do "Le Figaro", de 1995.
De todo modo, não se fez comunista pelo método mais
usual, que era o de aderir ao
Partido Comunista. Na verdade, o partido aceitou a direção
de um homem sobre o qual o
único consenso, entre admiradores e inimigos, é o de que
possui extraordinário carisma,
no sentido que o filósofo Max
Weber dá ao termo.
"Carisma implica muito mais
do que popularidade. O líder
carismático é percebido por
seus seguidores como dotado
de poderes ou qualidades sobre-humanas ou, pelo menos,
excepcionais. E ele se percebe a
si próprio como "eleito" do alto
para cumprir uma missão. Ambos os requisitos se cumpriram
em Cuba", escreveu o acadêmico americano Richard Fagen.
Fidel associou o carisma a
uma inquietação permanente,
que o levou, aos 20 anos (1947),
a participar de uma frustrada
tentativa de invadir a República Dominicana para depor o ditador Rafael Trujillo.
Antes disso, tivera a sua primeira e fracassada experiência
de interlocução com os EUA.
Aos 14 anos, em 1940, enviou
carta a Franklin Delano Roosevelt, na qual dizia ter 12 anos,
cumprimentava-o pela reeleição e pedia uma nota de US$ 10,
"porque nunca vi uma nota verde de dez dólares americanos e
gostaria de ter uma".
Nunca recebeu o dinheiro e
foi vítima de 33 tentativas de
assassinato, parte delas pela
CIA, a agência de inteligência
norte-americana.
Retórica
Ele marcaria a história de
Cuba não só com ações mas
com uma retórica caudalosa,
triunfalista. Ao ir para o exílio
no México, em 1955, profetizou: "De tais viagens, ou não se
tem retorno, ou se retorna com
a ditadura decapitada aos pés".
Quase tudo deu errado para
os 82 homens que, em 25 de novembro de 1956, embarcaram
no iate Granma para decapitar
a ditadura. Uma sucessão de
tempestades atrasou a chegada
e o grupo que deveria apoiar o
desembarque foi dizimado pelos soldados de Batista. Não
obstante, quando o grupo desembarcou, em 2 de dezembro,
voltou a profetizar: "Os dias da
ditadura estão contados".
Estavam. Às 3h de 1� de janeiro de 1959, Batista e colaboradores fugiram para a República
Dominicana. Uma semana depois, Fidel entrou em Havana e
voltou a profetizar: "Não nos
enganemos, acreditando que,
daqui para a frente, será mais
fácil. Talvez seja mais difícil".
Acertou outra vez.
Difícil, entre outras razões,
porque os revolucionários iniciaram processo de autofagia.
Os primeiros a divergir foram
os moderados do Movimento
26 de Julho. Em outubro, o líder guerrilheiro Hubert Matos
escreveu a Fidel, pedindo demissão do comando militar da
Província de Camaguey e do
governo revolucionário.
A carta custou a Matos 20
anos de prisão, "sistemáticas
perseguições, maus-tratos e
torturas", como ele contaria
depois. Ele passou a ser, em todos esses 20 anos, um dos símbolos, talvez o maior, de violação aos direitos humanos praticados por uma revolução que
Castro jurara, no início, ser "a
mais justa e a mais generosa".
Nem Ernesto Guevara, o
Che, ficou imune às disputas de
poder ou ideológicas no novo
regime. Che acreditava cegamente que sua missão era levar
a revolução socialista a toda a
América Latina. Fidel dependia
fortemente da URSS, cuja doutrina oficial era a da "coexistência pacífica" com o Ocidente.
Em 1964, "já não restavam
dúvidas de que tinham começado a seguir rumos divergentes.
A meta de Fidel era consolidar
o bem-estar econômico de Cuba e a sua própria sobrevivência
política, e, para isso, ele se dispunha a conciliar. A missão de
Che era difundir a revolução
socialista. Aproximava-se a hora em que deveria deixar Cuba", escreve Jon Lee Anderson,
em biografia de Guevara.
Três anos depois, Guevara
morria na Bolívia e, paradoxalmente, Fidel assumia o papel
de propagador da revolução no
resto do mundo, ao criar a Olas
(Organização Latino-Americana de Solidariedade).
URSS
O confronto de posições com
a URSS era uma relíquia de sua
nunca escondida irritação com
o comportamento do líder soviético Nikita Kruschev na crise dos mísseis em 1962, tido como o momento em que as duas
superpotências ficaram mais
próximas de um confronto.
Para ele, "a forma como
[Kruschev] se comportou na
crise foi uma séria afronta".
Afrontar a "convivência pacífica" da URSS com o internacionalismo revolucionário da Olas
parecia uma resposta à "afronta" anterior, mas durou pouco.
O bloqueio dos EUA aumentou a dependência dos recursos
enviados pela União Soviética.
Natural que Cuba entrasse em
colapso quando a URSS começou a ruir, a partir de 1989.
Entre 1989 e 1992, a economia cubana retrocedeu 35%,e o
racionamento (em vigor desde
o bloqueio americano) tornou-se mais rígido. Mas Fidel nunca
perdeu a pose e sempre teve
tratamento de superstar nos
encontros internacionais.
Ele teve momentos de estrela
até no território inimigo: em
1995, teve tratamento de herói
em visita ao bairro do Harlem,
em Nova York. Ainda se permitiu uma ironia: "Se algum dia os
EUA precisarem de médicos,
garanto que temos os melhores. Teria o maior prazer em
mandá-los para tratar da população que não pode pagar os
hospitais caros daqui".
Uma ironia que corresponde
a uma realização, o êxito no setor de saúde, que nem mesmo
os mais ferozes críticos negam.
O triunfalismo e a retórica
quase sempre inflamada não
impediram que, por vezes, Castro preferisse aos clássicos
marxistas ou revolucionários o
dramaturgo espanhol Calderón
de la Barca para recitar, na Cúpula sobre o Desenvolvimento
Social de 1995: "A vida é sonho
e, os sonhos, sonhos são".
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