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Renúncia gerenciada atrasa mudanças
Segundo conhecedores da ilha, Fidel Castro administra a própria sucessão e segura expectativa popular sobre transição
Despedida prolongada do ditador pode frear planos de reforma de Raúl; vice Carlos Lage pode ser surpresa
no processo sucessório
DA REDAÇÃO
Com a carta de renúncia de
Fidel Castro -na qual em certo
trecho ele diz "não me despeço"-, o regime cubano cumpre
importante etapa do estudado
processo de transição que já começou há 18 meses na ilha, alimentando expectativas internas sobre melhora das duras
condições de vida, mas dilatando o prazo de uma abertura democrática ou do colapso do sistema político construído depois da revolução de 1959.
Essa é a opinião de estudiosos de Cuba ouvidos pela Folha. Para nenhum deles, o passo tomado pelo ditador foi uma
surpresa ou acarreta mudanças
bruscas no futuro imediato da
ilha -não enquanto Fidel viver.
O fato de Fidel decidir estar
fora do poder -em vez de uma
morte repentina que causaria
dias de comoção na ilha em
meio a uma transição política
indefinida- torna-o, paradoxalmente, administrador e fiador de sua própria sucessão.
"Fidel está conseguindo gerenciar sua própria sucessão,
de uma forma constitucional.
Ele está observando tudo e promovendo um processo pacífico", disse Julia Sweig, analista
para América Latina do Council on Foreign Relations.
Ignácio Ramonet, diretor do
jornal "Le Monde Diplomatique", reforça a idéia de transição administrada. "Fidel não
está desaparecendo, é uma personalidade enorme, que vai
continuar escrevendo. Ele está
saindo do poder tradicional para assumir o quarto poder", diz
ele, autor de "Fidel Castro: Biografia a duas vozes".
Despedida prolongada
Essa despedida prolongada
tem efeito colaterais. Para
Sweig, a situação funciona como moderador de expectativas
em torno do que pode ser o governo Raúl Castro, seu irmão
no poder interinamente desde
julho de 2006, quando o ditador adoeceu gravemente.
"Estando de fora e ainda vivo,
o que Fidel faz é ajudar Raúl
Castro a manejar as expectativas e mantê-las baixas, enquanto põe na mesa o tema do "pão e
da manteiga", ou seja, como os
cubanos terão acesso a uma vida melhor", diz ela, autora do livro de 2002 "Inside the Cuban
Revolution".
Isso porque, se Fidel é o pai
intelectual e guia do regime,
Raúl sempre foi -e reforçou
essa imagem no último ano e
meio- o irmão de poucas palavras, que gosta de ser visto como "pragmático".
O perfil, combinado com um
chamado amplo ao debate na
ilha feito pelo comandante interino em meados do ano passado, contribuíram para sugerir uma atmosfera de que, com
Raúl, parte das queixas apresentadas nas reuniões em locais de trabalho ou universidades (salários baixíssimos, economia paralela em dólar, restrições de viagens e internet)
pudesse ser resolvida.
Para o cubano Samuel Faber,
professor aposentado da Universidade da Cidade de Nova
York, um outro efeito da despedida prolongada é justamente
brecar eventuais intenções do
irmão de acelerar plano de reformas econômicas.
"Enquanto ele ainda tiver suficiente saúde para falar por telefone, escrever artigos e falando com pessoas, sempre vai ser
um fator de influência. Não
creio que Raúl se atreva a fazer
mudanças importantes enquanto for assim", diz Farber.
Tanto o cubano como Sweig
dizem que o que está no horizonte são pequenas reformas
econômicas, como no regime
de terras ou na administração
de pequenos negócios.
Quanto aos alcances do chamado ao debate de Raúl, Farber
lembra que o regime está num
processo que também busca
controlar: ouve as queixas, não
sabe como responder a elas
-como ficou claro no debate
gravado com estudantes e o
presidente do Parlamento, há
duas semanas- e veta divulgação nacional dos debates.
"O governo mantém o monopólio de comunicação entre diferentes grupos de cidadãos.
Dessa maneira, não permite
que se articulem os grupos insatisfeitos nacionalmente. Mas
o fato é que há uma inquietude
na ilha", diz o professor.
Sucessão e gerações
No próximo domingo, o sucessor formal de Fidel vai ser
escolhido, na sessão inaugural
da Assembléia Nacional de Cuba, eleita em 20 de janeiro.
Os parlamentares elegem os
31 membros do Conselho de
Estado e o presidente máximo
da instância, até ontem Fidel.
Há uma grande expectativa,
ecoada nas ruas de Havana, de
que Raúl seja simplesmente
confirmado no cargo que já
ocupa interinamente. Mas Julia Sweig não descarta que um
dos vice-presidentes do conselho, o influente Carlos Lage, 56,
represente também uma renovação geracional e seja eleito.
De todo modo, mesmo que
Raúl seja o novo presidente,
com seus 76 anos, abre-se a vaga do posto que ele formalmente ocupa, o de número 2.
Nessa disputa, os analistas citam mais uma vez Lage, que,
médico de formação, é quem
conduz a economia. O vice-presidente, visto como "premiê de
fato", tem cada vez mais participação internacional, além de
apreço interno, por ter liderado
plano de recuperação energético na crise aguda dos 90.
Lage, para Fidel, é a "geração
intermediária", mencionada na
carta, que aprendeu "quase inacessível arte de organizar e dirigir uma revolução".
Para Samuel Farber, o líder
parece mais "afinado" com
Raúl do que o chanceler Felipe
Pérez Roque, ex-secretário
particular de Fidel e "guardião
de suas idéias". O professor diz
que será importante acompanhar que papel terá agora Pérez, 43, e outros integrantes de
seu grupo, a novíssima geração,
os primeiros a integrar a cúpula
de poder que já nasceram sob o
regime.
(FLÁVIA MARREIRO, SAMY ADGHIRNI E ANDREA MURTA)
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