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ARTIGO
Igreja precisa de um papado reformador
PHILIP STEPHENS
DO "FINANCIAL TIMES"
Os católicos choram a morte de
um homem profundamente santo. Milhões de pessoas em todo o
mundo acenderam velas quando
o papa João Paulo 2� foi enterrado. A missa de corpo presente, na
basílica de São Pedro, fez menção
a um pontífice pleno de coragem
e humanidade.
Uma galáxia de líderes políticos
e as multidões sem precedentes
em Roma atestaram a influência
singular de João Paulo 2�, que se
estendeu para muito mais longe
do que a igreja de Karol Wojtyla.
No entanto, ao mesmo tempo
em que choram sua morte, os católicos só podem esperar que o futuro lhes reserve um papado diferente do dele, menos auto-engrandecedor.
O catolicismo prosperou em
boa parte do mundo durante os
26 anos que durou o papado de
João Paulo 2�. Ele enxergava seu
pontificado como uma peregrinação constante. Ele visitou católicos na Ásia, na África e na América Latina que, até então, dependiam de um grupo cada vez menor de missionários para manter
sua fé. João Paulo 2� será lembrado sobretudo por sua participação na queda do comunismo, mas
em todo lugar para onde ia ele defendeu a luta contra a tirania.
Entretanto, em seu núcleo europeu e nos EUA -por sinal, país
no qual o pontífice polonês nunca
se sentiu à vontade-, as congregações católicas vêm diminuindo,
e as vocações, também. É difícil
recordar qualquer outro ocupante da Santa Sé que tenha sido tão
admirado quanto João Paulo 2�,
mas que, ao mesmo tempo, tenha
se distanciado tanto de seu rebanho. Muitas das pessoas que hoje
se ajoelham diante da chama bruxuleante da recordação ignoram
há muito tempo os editos de João
Paulo 2� na prática de sua fé.
O cisma freqüentemente é descrito como sendo uma divisão entre leigos que lutam para dar conta das complexidades morais e
dos dilemas sociais de nossa era e,
do outro lado, uma liderança católica em Roma determinada a
defender e a conservar as verdades eternas da fé cristã.
O campo de batalha dessa disputa vem sendo a individualidade
moral -ou seja, até que ponto o
clima social de nossa época ou os
avanços na tecnologia médica e
nos conhecimentos biológicos
podem ou devem ser incorporados aos ensinamentos católicos.
São discussões extremamente angustiantes e difíceis, que transcendem a trivial caricatura de uma
simples batalha entre o relativismo moral modernista e o absolutismo reluzente das verdades reveladas.
Entretanto, por trás das muitas
controvérsias relacionadas à sexualidade humana, ao casamento, à igualdade entre os sexos e a
todo o resto, há uma discussão
igualmente importante sobre
uma confusão promovida deliberadamente pelo Vaticano entre
leis criadas pelos homens e verdades eternas. É essa confusão que o
próximo papa precisará desfazer.
O pontificado de João Paulo 2�
seguia o modelo de uma monarquia do século 19. Sua reativação
da afirmação de infalibilidade papal não se baseou nos Evangelhos
ou no Vaticano 1�, o concílio convocado por Pio 9� em 1869.
Deixando de lado seu anti-semitismo visceral, as preocupações de Pio 9� diziam respeito
mais ao poder pessoal do que à
verdade teológica. Um século
mais tarde, o papa João Paulo 2�
exigia a mesma obediência cega à
interpretação que ele fazia das leis
de Deus.
Dúvidas
A questão de quando a vida começa, que está à base das discussões sobre a contracepção, o aborto e as pesquisas com células-tronco, angustia a igreja praticamente desde que ela surgiu.
Já houve teólogos eminentes a
favor de cada um dos lados na discussão. Santo Tomás de Aquino
assumiu a posição curiosa de que
a vida começa antes mesmo de o
óvulo ser fertilizado. Para ele, a alma humana reside no espermatozóide. A masturbação é um crime
comparável ao homicídio.
Duvido que mesmo o cardeal
Joseph Ratzinger, que, na condição de atual líder da Congregação
para a Doutrina da Fé, chefia a
Santa Inquisição do Vaticano nos
dias de hoje, defenderia uma visão tão equivocadamente radical.
Um consenso que perdurou durante boa parte do século passado
era que a vida começa entre o momento da concepção e o nascimento; 40 dias após a fertilização
parecia ser um momento provável para se dar a fusão da alma
com a forma humana.
O mais importante é que, durante a maior parte de sua existência, a igreja sempre reconheceu a existência de incertezas biológicas e teológicas. Procuramos
em vão uma só verdade na vida de
Jesus.
Certeza
Karol Wojtyla, que não era teólogo, desdenhou essas dúvidas
justificadas. Não importava para
ele que houve uma época, no passado, em que os clérigos podiam
se casar e que as mulheres podiam
ser diáconas.
Quer se tratasse do celibato dos
padres, da ordenação de mulheres no sacerdócio ou do uso de camisinhas para defender a vida
contra o flagelo da Aids na África,
a obediência a suas encíclicas tinha de ser priorizada, acima de
qualquer precedente histórico ou
argumento racional.
Foi assim que o primitivismo
doutrinal de organizações como o
Opus Dei tomou o lugar do espírito de investigação teológica encorajado pelos jesuítas e outras ordens religiosas.
O pontificado de João Paulo 2�
foi um papado dedicado a seu
próprio poder. Ele defendeu a autoridade temporal em detrimento
de sua missão espiritual.
Assim, a recusa do Vaticano em
tomar medidas decisivas em resposta à crise suscitada pelos padres pedófilos priorizou a proteção da hierarquia e o bem-estar
material da Igreja Católica, passando à frente das necessidades
de seu rebanho.
Mas existe um paradoxo aqui.
Seu próprio autoritarismo roubou autoridade à igreja. Não me
refiro apenas aos bancos vazios
das igrejas da Irlanda, da Itália ou
da Espanha. Uma grande parcela
dos católicos praticantes ignora
os editos do Vaticano. Para cada
um que incorreu num lapso, há
dois, três ou quatro outros que
continuam a receber os sacramentos ao mesmo tempo em que
se norteiam por suas próprias
consciências em assuntos relativos à ética pessoal.
Diversos padres praticam um
conluio nesse sentido, exortando
seus fiéis a examinar suas almas
com cuidado, mas continuando a
dar a comunhão àqueles que se
negam a arrepender-se de pecados que têm a certeza de não terem cometido. A confissão está se
tornando o sacramento perdido
do catolicismo.
Alguém certa vez observou, fazendo referência a um primeiro-ministro britânico, que "ele ocupa
o cargo, mas não o poder". Algo
semelhante poderia ser dito sobre
o último papa.
É compreensível que o foco das
atenções agora se volte às personalidades e às inclinações doutrinais dos candidatos a sucedê-lo
no trono de Pedro. Será o próximo sumo pontífice outro italiano,
ou será que o conclave, em lugar
da Europa, vai buscar um candidato na América Latina ou na
África? Será que o cardeal Ratzinger vai manipular o conclave ou
os cardeais reunidos, quase todos
nomeados pelo próprio João Paulo 2�, encontrarão fé suficiente para decidir por conta própria?
O mais importante é se o próximo a ocupar o trono de Pedro será suficientemente sábio e forte
para compreender que a Igreja
precisa de um papado reformado
-ou seja, um monarca constitucional, e não absolutista.
O ponto de partida seria a volta
ao espírito de colegialidade episcopal visualizado pelo Vaticano
2�, deixando de lado o conceito da
infalibilidade do papa. É preciso
voltar a traçar a distinção vital entre a palavra de Cristo e a dos
guardiões temporários de sua
igreja.
Os católicos não podem esperar
respostas fáceis ou rápidas aos dilemas morais dos nossos tempos.
Eles podem pedir ao novo papa
que os lidere num espírito de caridade e humildade agostiniana.
Tradução de Clara Allain
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