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A RESISTÊNCIA
Os mujahidin, ou "guerreiros santos", se reúnem no Paquistão e só esperam sinal para aderir
Voluntários lutam para se unir ao Taleban
IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A RAWALPINDI,
MURREE E CHANGLAGALI (PAQUISTÃO)
"Eles conseguiram!", gritou
Mohammad Iqbal, entrando na
sala esbaforido pela altitude de
2.000 metros e pelo ar frio da
montanha em Changlagali, uma
vila encravada na estrada entre Islamabad e Caxemira, a cem sinuosos quilômetros da capital do
Paquistão. Ele tinha acabado de
ouvir no rádio a notícia de que o
Taleban deveria liberar a entrada
de 1.200 voluntários paquistaneses que esperavam, na Província
de Kunahr, para se juntar às forças da milícia no Afeganistão que
estão sob ataque dos Estados Unidos há cinco semanas.
""Tudo o que eu quero é ir para
lá logo. Já vi a morte de perto na
Caxemira e não tenho medo de
nada. Quem morre é recebido
com honras no céu", afirmou Iqbal, falando com experiência de
cinco anos de combate -dos
seus 23 de vida. Um veterano.
Ele não é o único. Na fronteira
Paquistão-Afeganistão, cerca de
10 mil voluntários esperam sua
vez. O Taleban disse que não os
quer, até porque não tem como
sustentá-los. Mas enviou sinal de
que isso pode mudar e que os
1.200 podem ser só o começo.
""Nós só esperamos o sinal",
afirma o homem que recrutou Iqbal e o enviou para treinamento. É
Fazal-ur-Rehman Shaker, um religioso de 30 anos. De fala calma,
ele explica como o jihad (esforço
que o muçulmano deve desempenhar pelo islã, que os extremistas
interpretam como guerra santa)
da Caxemira pode virar um jihad
no Afeganistão e, por extensão,
no Paquistão do presidente-general Pervez Musharraf.
""Nós estamos do lado dos muçulmanos. Se estão ameaçados
pelos EUA no Afeganistão, vamos
ajudá-los. Se nosso governo não
quer que nós o ajudemos, nosso
governo está contra nós e contra o
islã", diz, dando eco à carta atribuída a Osama bin Laden divulgada nesta semana, na qual Musharraf é condenado por apoiar ""a
cruzada cristã". E a carta nem havia sido tornada pública.
Shaker afirma que nesta semana mandará para a fronteira 313
combatentes prontos e armados.
""Tenho mais mil a caminho, nos
centros de treinamento", conta,
na escola religiosa Abdullah Ibn
Umar, em Changlaglai. Lá fica
uma base do seu grupo de mujahidin, o Jaish-i-Muhammad.
Na quarta-feira, na porta da
Embaixada do Taleban em Islamabad, quatro desses combatentes esperavam a entrevista coletiva do mulá Abdul Zaeef acabar.
""Estou aqui para ver se consigo
meus papéis já hoje", diz o líder
do grupo, Abdul Ikrar, 25, um jovem da Jacobabad que segue a receita: sem mulher ou filhos, educado em madrassa e pobre.
A ironia é que foi o próprio governo paquistanês que alimentou
os grupos que agora o desafiam.
Sua disputa com a Índia pelo território da Caxemira, que se desenrola há 52 anos e passou por três
guerras, levou o país a fomentar a
União do Jihad da Caxemira.
É um organização difusa, com
dezenas de pequenos núcleos que
treinam mujahidin, os guerreiros
santos. Os números são extremamente imprecisos. Num país com
141,6 milhões de habitantes, estima-se que sejam milhões.
Retórica uniforme
Para um ocidental, é difícil escapar de simplificações ao se confrontar com o discurso de um
mujahhid. A Folha visitou dois
centros de recrutamento, um de
treinamento militar, três escolas
religiosas e acompanhou duas
manifestações. A retórica dos soldados é impressionantemente
uniforme: calcados em passagens
do Alcorão, eles desfiam ataques
ao Ocidente, lembram da derrota
soviética no Afeganistão e falam
da falta de medo de morrer porque o Paraíso os espera.
"Você tem de entender que este
é um país que foi criado para ser
uma república de muçulmanos. A
nossa fé é muito, muito mais arraigada do que o discurso fácil de
um Bin Laden. Por outro lado,
tem gente manipulando isso",
afirma o analista político Jehanzeb Aziz, que trabalhou como
porta-voz dos serviços de segurança e inteligência do país.
No campo político, fala-se em
200 mil filiados a partidos islâmicos. ""Somos hoje a voz do povo
contra a opressão dos americanos
e de nosso governo, que nos
traiu", dispara o vice-presidente
da maior dessas agremiações, o
Jamiat-i-Islami, Liaquat Baloch
(leia texto abaixo).
Baloch é um dos acusados por
Aziz de manipular jovens como
Mohammad Iqbal. Porta-voz do
Ministério das Relações Exteriores, Aziz Khan dá a visão oficial,
mais rósea: ""Os mais extremistas
só estão fazendo barulho".
Aziz faz ressalvas. ""O nosso povo, a classe média principalmente, não quer o apoio ao ataque dos
EUA. Como estamos em crise
econômica, tentando rolar nossos
US$ 32 bilhões de dívidas, e os índices sociais são ruins, temos
chão fértil para as manifestações."
Esse chão pode ser avaliado
com planilhas da Autoridade Nacional de Dados e Registros: um
PIB per capita de US$ 2.000, analfabetismo na casa dos 62%, 34%
da população na pobreza.
A colheita da lavoura fica por
conta das madrassas, nome que
designa as 15 mil escolas religiosas
do país. São instituições populares, que dão ensino básico gratuito e doutrinação islâmica integrista. O Taleban nada mais era do
que uma milícia de estudantes encorpada pelo governo do Paquistão, para impor a ordem, e um regime amigo, no Afeganistão.
""Nossos alunos são geralmente
muito humildes, e nós ensinamos
o caminho da fé para eles", afirma
o diretor da madrassa Arabia, em
Murre (60 km de Islamabad), o
mulá Saeed Abbasi, 50, que tem
140 alunos. ""Cada um fica aqui
uns três, quatro anos. O sustento
vem de empregos no comércio da
cidade e doações", relata.
Ele indica em Murree o centro
de treinamento do grupo Sheikhupura, onde Ahmed Shazhad,
19, recebe visitantes. ""O jihad promove a paz na Terra e nega o terrorismo", diz a contracapa do livreto explicativo que ele distribui.
Depois de contar sua história, típica de um país onde 41% da população tem até 14 anos e as condições de vida são difíceis (leia
texto abaixo), Shazhad pede para
que não sejam tiradas fotos
-nem dele nem do campo de
treinamento desativado onde ele
aprendeu a atirar com 15 anos.
O treinamento custa o equivalente a US$ 1.200 e é bancado por
doações. Dura quase seis meses:
21 dias de treinamento militar, 21
de doutrinação religiosa e o resto
de capacitação para ações. Ninguém diz uma palavra sobre
quem paga a conta.
Mas os jovens na sala falam sobre morrer pela religião, pela causa de seus irmãos do outro lado
das montanhas. É propaganda,
como em toda guerra, mas não
deixa de causar certo estranhamento a naturalidade com a qual
eles reafirmam, a toda hora, seu
""morituri te salutant" voluntário.
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