São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

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GUERRA SEM LIMITES/ENTREVISTA

Para o filósofo francês, o equilíbrio do confronto leste-oeste deu lugar ao terror urbano

"Pânico Frio" substitui Guerra Fria, diz Virilio

FERNANDO EICHENBERG
FREE-LANCE PARA A FOLHA, DE PARIS

O espectro do terrorismo faz o filósofo francês Paul Virilio, 72, traçar um quadro sombrio para o século 21. O equilíbrio da Guerra Fria, em que Estados se ameaçavam mutuamente de destruição total, deu lugar, segundo ele, ao desequilíbrio do "Pânico Frio", o confronto em que o terror, seu protagonista, pode agir a qualquer hora, em qualquer lugar.
"O terrorista compreendeu que, atacando a cidade, as aglomerações, onde há mais gente e onde se pode provocar maiores estragos, ele tem um poder sem possuir um arsenal", afirma Virilio, que acaba de lançar o livro "La Ville Panique" (a cidade em pânico).
O polêmico Virilio é autor de vários ensaios filosóficos, quatro deles traduzidos no Brasil pela Estação Liberdade e pela Editora 34 ("Estratégia da Decepção", "Velocidade e Política", "A Bomba Informática" e "O Espaço Crítico"). Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha.

 

Folha - O sr. defende que o grande acidente do século 20 não é o fim da história, mas o fim da geografia, a compressão espacial e temporal. A "cidade em pânico", assim definida pelo sr., seria a maior catástrofe do século 20.
Paul Virilio -
De certa forma, todas as cidades estão no centro do mundo, pelo imediatismo, pela ubiqüidade e pela instantaneidade. São o lugar da realidade política. Mais o progresso técnico se desenvolveu, mais a catástrofe se tornou desmesurada. Não é simplesmente a economia que se concentrou na época moderna, mas a vida política. As guerras, antigamente, ocorriam na campanha. Hoje, passou-se de uma estratégia da guerra de fronteiras na escala de um Estado nacional para a concentração na cidade.

Folha - Por isso o sr. cita o prefeito de Filadélfia em meio a tumultos urbanos dos anos 60: "As fronteiras do Estado passam para o interior das cidades"?
Virilio -
Hoje, isso é mais verdadeiro do que nunca, pois, com as telecomunicações, a internet, a instantaneidade, o tempo é mundial. Não vivemos mais o tempo local, dos calendários, das efemérides, mas o tempo mundial, astronômico, da compressão temporal. Vivemos "live". A caixa de ressonância desses acontecimentos é a concentração urbana.
A metropolítica do terror supera a geopolítica da grandeza. Antes, ter uma grande e poderosa nação era garantia de paz. Hoje, há o risco absoluto do menor acidente, e não somente de um atentado. Os terroristas jogam com essa fragilidade. Passamos do equilíbrio do terror entre Estados ao desequilíbrio do terror terrorista. O terrorista compreendeu que, atacando a cidade, as aglomerações, ele tem um poder sem possuir um arsenal. Ultrapassamos a visão da guerra de Clausewitz.

Folha - O sr. critica a "megalomania americana", acusando-a de se situar fora da geografia do mundo.
Virilio -
Há um delírio da chamada hiperpotência americana, absolutamente defasado da realidade da ameaça. Há um paradoxo, pois, no Iraque e em outros lugares, os americanos estão na mesma situação que o Exército polonês enviando sua cavalaria contra as divisões Panzer. Eles foram arrasados. Hoje, a hiperpotência americana, apesar de todo seu armamento, é ridicularizada pela novidade da ameaça. A surpresa é uma arma absoluta contra a velocidade absoluta dos mísseis, dos exércitos, dos serviços de informação. Os EUA são como Davi e Golias, e há qualquer coisa ridícula nesse Golias americano, e trágica para o mundo, pois somos todos ameaçados pelo infantilismo desse gigante de papelão.

Folha - Segundo o sr., desde o século 20 assistimos à emergência de um tipo antropológico, o "exterminador", em meio ao novo "desequilíbrio do terror". Quem é ele?
Virilio -
Os dois grandes tipos da história antropológica subsistiram, o predador e o produtor. Vemos agora emergir o exterminador. Não é o grande chacinante, genocida, mas aquele que não leva em consideração a finitude do mundo. O mundo se tornou muito pequeno para o progresso científico e técnico. É aquele que não olha o fim, não o fim no sentido apocalíptico, mas no sentido de finitude. Atingimos o limite do habitat ecológico. Toda ação egoísta e insensata pode se tornar escatológica. E a política escatológica exterminadora sempre foi ousada. Primeiro, por meio da bomba atômica e o que foi chamado de equilíbrio do terror. Hoje, esse equilíbrio acabou. Entramos no desequilíbrio do terror terrorista. O exterminador não é mais, simplesmente, um chefe de Estado.
No conflito dos mísseis cubanos, em 1961, entre Kennedy e Kruschov, estávamos à beira do extermínio. Hoje, qualquer um pode levar a essa situação. Basta colocar a bomba no lugar preciso, seja pela biologia, o vírus, a contaminação química, a destruição de centrais nucleares ou outras situações trágicas. Na dimensão suicida do novo terrorismo, ele pode ser qualquer pessoa. Passamos da Guerra Fria ao Pânico Frio -a cada momento um sentimento vem despertar o pânico do fim nas populações. Dizendo isso, sou um realista, não um pessimista. Não acredito no apocalipse amanhã. Mas alcançamos o limite, a finitude está aí. O exterminador está entre nós.

Folha - Como esse "hiperterrorismo" provoca a "estandardização dos comportamentos e a sincronização das emoções", segundo sua tese, fazendo com que a "democracia de opinião" ceda a uma "democracia da emoção"?
Virilio -
A rapidez das informações e a revolução industrial provocaram a estandardização das opiniões. A opinião pública foi construída, por meio da imprensa, entre os séculos 18 e 20. Vimos emergir ao lado, e logo adiante da democracia representativa, das eleições, uma democracia de opinião pública, organizada pelos meios de comunicação, essencialmente a imprensa e o rádio. Com a compressão temporal, não se trata mais de estandardização da opinião, mas da sincronização da emoção sentida na escala mundial. Há a possibilidade se ver emergir uma democracia emocional. O terrorismo também joga com isso, por meio do pânico.

Folha - O sr. denuncia a "infowar", a militarização da informação desde 2001: "A mentira estratégica se tornou uma arma de destruição em massa da realidade".
Virilio -
A guerra tem três dimensões. A primeira delas é a massa, os grandes batalhões, a massa contra o indivíduo. A segunda é a energia, o que já é mais moderno. É a pólvora, mas é também a energia da bomba atômica. Por fim, a guerra contemporânea desenvolveu a terceira dimensão: a informação. A informação se tornou um elemento determinante do real, que produz, fabrica o real. Estamos diante da possibilidade de uma guerra ao real, e não somente contra os homens, as nações. Cada indivíduo começa a se perguntar o que é ou não real. Há uma perda da realidade, uma arma de guerra, ao mesmo tempo daqueles que detêm os meios de informação e daqueles que os utilizam de maneira desviada.

Folha - Nessa "infowar", a tela substituiu o front.
Virilio -
A tela se tornou um campo de batalha. Tanto ao nível publicitário como no da propaganda política de nações. O grande risco é a "desrealidade" das populações, um tipo de loucura coletiva, de privação de referências. O homem precisa de referências para viver. O imediatismo e a ubiqüidade deformam, fazem desaparecer essas referências, com o risco dessa aceleração da realidade, na qual a loucura coletiva é uma ameaça, uma arma de guerra. O suicida tem uma arma de persuasão em massa. Estamos num período sem referências históricas.

Folha - Qual é o projeto americano de um "exército antipânico", ao qual o sr. se refere no livro?
Virilio -
Trata-se de um projeto do Pentágono. Cada vez que há uma guerra, a situação que se segue é incontrolável. Haveria dois exércitos, um para ganhar a guerra, e outro para ganhar a paz. É a lógica de ganhar uma guerra, que já está ganha, mas que se está perdendo. É exatamente esse o paradoxo atual no Iraque.

Folha - O sr. se refere também ao surgimento de um novo tipo de guerra, contra os civis.
Virilio -
A primeira guerra foi a guerra dos tumultos, a guerra civil, entre os homens, anterior ao surgimento da estrutura política que produz a guerra nacional, internacional e, enfim, mundial. Hoje, vemos aparecer, com o terrorismo, um novo tipo de guerra, a guerra aos civis. Hoje, o terrorismo recupera isso, e vemos a cidade como campo de batalha da guerra aos civis, pois é lá que eles estão. Estamos assistindo a uma metamorfose dos conflitos.

Folha - O mundo ficou pequeno para o progresso, como o sr. diz?
Virilio -
Temos todo o espaço necessário aqui. Estamos diante da necessidade de uma política, um pensamento da finitude, que é o pensamento dos filósofos desde a origem. Não podemos pensar a vida sem pensar a morte. Não podemos fazer uma referência à plenitude sem fazer referência à finitude. Nossas políticas se tornaram idealistas, inclusive as materialistas, que não projetam o fim, exceto de uma maneira terrorista, fatal. O fim não é uma fatalidade, mas um fato. A política, no grande sentido do termo, é a arte do possível, e o possível está face ao fim. Um homem que não vê a possibilidade da morte de uma civilização ou do mundo não é um homem livre, mas, de alguma forma, condicionado pelo idealismo.

Folha - Como o sr. analisa a situação da América Latina e do Brasil?
Virilio -
Sou bastante inquieto em relação à América Latina. Meu pai era italiano, minha mãe, bretã, sinto-me um "latino-europeu" e gosto muito da América Latina. É um continente que esteve na vanguarda de muitos pensamentos e que sofre terrivelmente. A pressão que foi feita pela América do Norte sobre a América do Sul ameaça enormemente o futuro da América Latina. Preocupo-me bastante quando vejo o destino desses países, e guardo uma enorme esperança no Brasil. Espero que a América Latina escape ao destino da África, pelo qual nós, europeus, somos em grande parte responsáveis. Os americanos parecem agir na América Latina como nós agimos na África. Espero que a América Latina se salve.

Folha - Pessoalmente, como o sr. vive esses turbulentos tempos?
Virilio -
Vivemos um estado de violência que ainda vai durar algumas dezenas de anos. Acredito que o Pânico Frio ainda vá durar uns 20 anos. O mundo que virá depois disso eu não verei, pois tenho 72 anos. Tenho a impressão de que um mundo está acabando, e um outro vai começar. Eu vou acabar junto com esse mundo que está terminando. É o meu tempo.
Mas não é nada triste. É apenas impressionante. Não devemos nos desesperar. Creio que a grandeza de nossa época seja a de enfrentar acontecimentos de extrema gravidade. Em Madri, aqueles que reivindicaram o atentado disseram "vocês, os ocidentais, escolheram a vida; nós escolhemos a morte". Creio que, hoje, possamos adotar como slogan "viva a vida!". Esse é o verdadeiro slogan, da esperança, contra os kamikazes e os suicidas. Viva a vida.


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