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GUERRA SEM LIMITES/ENTREVISTA
Para o filósofo francês, o equilíbrio do confronto leste-oeste deu lugar ao terror urbano
"Pânico Frio" substitui Guerra Fria, diz Virilio
FERNANDO EICHENBERG
FREE-LANCE PARA A FOLHA, DE PARIS
O espectro do terrorismo faz o
filósofo francês Paul Virilio, 72,
traçar um quadro sombrio para o
século 21. O equilíbrio da Guerra
Fria, em que Estados se ameaçavam mutuamente de destruição
total, deu lugar, segundo ele, ao
desequilíbrio do "Pânico Frio", o
confronto em que o terror, seu
protagonista, pode agir a qualquer hora, em qualquer lugar.
"O terrorista compreendeu que,
atacando a cidade, as aglomerações, onde há mais gente e onde se
pode provocar maiores estragos,
ele tem um poder sem possuir um
arsenal", afirma Virilio, que acaba
de lançar o livro "La Ville Panique" (a cidade em pânico).
O polêmico Virilio é autor de
vários ensaios filosóficos, quatro
deles traduzidos no Brasil pela Estação Liberdade e pela Editora 34
("Estratégia da Decepção", "Velocidade e Política", "A Bomba Informática" e "O Espaço Crítico").
Leia a seguir trechos da entrevista
concedida à Folha.
Folha - O sr. defende que o grande acidente do século 20 não é o
fim da história, mas o fim da geografia, a compressão espacial e
temporal. A "cidade em pânico",
assim definida pelo sr., seria a
maior catástrofe do século 20.
Paul Virilio - De certa forma, todas as cidades estão no centro do
mundo, pelo imediatismo, pela
ubiqüidade e pela instantaneidade. São o lugar da realidade política. Mais o progresso técnico se
desenvolveu, mais a catástrofe se
tornou desmesurada. Não é simplesmente a economia que se
concentrou na época moderna,
mas a vida política. As guerras,
antigamente, ocorriam na campanha. Hoje, passou-se de uma
estratégia da guerra de fronteiras
na escala de um Estado nacional
para a concentração na cidade.
Folha - Por isso o sr. cita o prefeito de Filadélfia em meio a tumultos
urbanos dos anos 60: "As fronteiras
do Estado passam para o interior
das cidades"?
Virilio - Hoje, isso é mais verdadeiro do que nunca, pois, com as
telecomunicações, a internet, a
instantaneidade, o tempo é mundial. Não vivemos mais o tempo
local, dos calendários, das efemérides, mas o tempo mundial, astronômico, da compressão temporal. Vivemos "live". A caixa de
ressonância desses acontecimentos é a concentração urbana.
A metropolítica do terror supera a geopolítica da grandeza. Antes, ter uma grande e poderosa
nação era garantia de paz. Hoje,
há o risco absoluto do menor acidente, e não somente de um atentado. Os terroristas jogam com essa fragilidade. Passamos do equilíbrio do terror entre Estados ao
desequilíbrio do terror terrorista.
O terrorista compreendeu que,
atacando a cidade, as aglomerações, ele tem um poder sem possuir um arsenal. Ultrapassamos a
visão da guerra de Clausewitz.
Folha - O sr. critica a "megalomania americana", acusando-a de se
situar fora da geografia do mundo.
Virilio - Há um delírio da chamada hiperpotência americana, absolutamente defasado da realidade da ameaça. Há um paradoxo,
pois, no Iraque e em outros lugares, os americanos estão na mesma situação que o Exército polonês enviando sua cavalaria contra
as divisões Panzer. Eles foram arrasados. Hoje, a hiperpotência
americana, apesar de todo seu armamento, é ridicularizada pela
novidade da ameaça. A surpresa é
uma arma absoluta contra a velocidade absoluta dos mísseis, dos
exércitos, dos serviços de informação. Os EUA são como Davi e
Golias, e há qualquer coisa ridícula nesse Golias americano, e trágica para o mundo, pois somos todos ameaçados pelo infantilismo
desse gigante de papelão.
Folha - Segundo o sr., desde o século 20 assistimos à emergência de
um tipo antropológico, o "exterminador", em meio ao novo "desequilíbrio do terror". Quem é ele?
Virilio - Os dois grandes tipos da
história antropológica subsistiram, o predador e o produtor. Vemos agora emergir o exterminador. Não é o grande chacinante,
genocida, mas aquele que não leva em consideração a finitude do
mundo. O mundo se tornou muito pequeno para o progresso científico e técnico. É aquele que não
olha o fim, não o fim no sentido
apocalíptico, mas no sentido de finitude. Atingimos o limite do habitat ecológico. Toda ação egoísta
e insensata pode se tornar escatológica. E a política escatológica exterminadora sempre foi ousada.
Primeiro, por meio da bomba
atômica e o que foi chamado de
equilíbrio do terror. Hoje, esse
equilíbrio acabou. Entramos no
desequilíbrio do terror terrorista.
O exterminador não é mais, simplesmente, um chefe de Estado.
No conflito dos mísseis cubanos, em 1961, entre Kennedy e
Kruschov, estávamos à beira do
extermínio. Hoje, qualquer um
pode levar a essa situação. Basta
colocar a bomba no lugar preciso,
seja pela biologia, o vírus, a contaminação química, a destruição de
centrais nucleares ou outras situações trágicas. Na dimensão suicida do novo terrorismo, ele pode
ser qualquer pessoa. Passamos da
Guerra Fria ao Pânico Frio -a
cada momento um sentimento
vem despertar o pânico do fim
nas populações. Dizendo isso, sou
um realista, não um pessimista.
Não acredito no apocalipse amanhã. Mas alcançamos o limite, a
finitude está aí. O exterminador
está entre nós.
Folha - Como esse "hiperterrorismo" provoca a "estandardização
dos comportamentos e a sincronização das emoções", segundo sua
tese, fazendo com que a "democracia de opinião" ceda a uma "democracia da emoção"?
Virilio - A rapidez das informações e a revolução industrial provocaram a estandardização das
opiniões. A opinião pública foi
construída, por meio da imprensa, entre os séculos 18 e 20. Vimos
emergir ao lado, e logo adiante da
democracia representativa, das
eleições, uma democracia de opinião pública, organizada pelos
meios de comunicação, essencialmente a imprensa e o rádio. Com
a compressão temporal, não se
trata mais de estandardização da
opinião, mas da sincronização da
emoção sentida na escala mundial. Há a possibilidade se ver
emergir uma democracia emocional. O terrorismo também joga
com isso, por meio do pânico.
Folha - O sr. denuncia a "infowar", a militarização da informação desde 2001: "A mentira estratégica se tornou uma arma de destruição em massa da realidade".
Virilio - A guerra tem três dimensões. A primeira delas é a
massa, os grandes batalhões, a
massa contra o indivíduo. A segunda é a energia, o que já é mais
moderno. É a pólvora, mas é também a energia da bomba atômica.
Por fim, a guerra contemporânea
desenvolveu a terceira dimensão:
a informação. A informação se
tornou um elemento determinante do real, que produz, fabrica o
real. Estamos diante da possibilidade de uma guerra ao real, e não
somente contra os homens, as nações. Cada indivíduo começa a se
perguntar o que é ou não real. Há
uma perda da realidade, uma arma de guerra, ao mesmo tempo
daqueles que detêm os meios de
informação e daqueles que os utilizam de maneira desviada.
Folha - Nessa "infowar", a tela
substituiu o front.
Virilio - A tela se tornou um campo de batalha. Tanto ao nível publicitário como no da propaganda
política de nações. O grande risco
é a "desrealidade" das populações, um tipo de loucura coletiva,
de privação de referências. O homem precisa de referências para
viver. O imediatismo e a ubiqüidade deformam, fazem desaparecer essas referências, com o risco
dessa aceleração da realidade, na
qual a loucura coletiva é uma
ameaça, uma arma de guerra. O
suicida tem uma arma de persuasão em massa. Estamos num período sem referências históricas.
Folha - Qual é o projeto americano de um "exército antipânico", ao
qual o sr. se refere no livro?
Virilio - Trata-se de um projeto
do Pentágono. Cada vez que há
uma guerra, a situação que se segue é incontrolável. Haveria dois
exércitos, um para ganhar a guerra, e outro para ganhar a paz. É a
lógica de ganhar uma guerra, que
já está ganha, mas que se está perdendo. É exatamente esse o paradoxo atual no Iraque.
Folha - O sr. se refere também ao
surgimento de um novo tipo de
guerra, contra os civis.
Virilio - A primeira guerra foi a
guerra dos tumultos, a guerra civil, entre os homens, anterior ao
surgimento da estrutura política
que produz a guerra nacional, internacional e, enfim, mundial.
Hoje, vemos aparecer, com o terrorismo, um novo tipo de guerra,
a guerra aos civis. Hoje, o terrorismo recupera isso, e vemos a cidade como campo de batalha da
guerra aos civis, pois é lá que eles
estão. Estamos assistindo a uma
metamorfose dos conflitos.
Folha - O mundo ficou pequeno
para o progresso, como o sr. diz?
Virilio - Temos todo o espaço necessário aqui. Estamos diante da
necessidade de uma política, um
pensamento da finitude, que é o
pensamento dos filósofos desde a
origem. Não podemos pensar a
vida sem pensar a morte. Não podemos fazer uma referência à plenitude sem fazer referência à finitude. Nossas políticas se tornaram idealistas, inclusive as materialistas, que não projetam o fim,
exceto de uma maneira terrorista,
fatal. O fim não é uma fatalidade,
mas um fato. A política, no grande sentido do termo, é a arte do
possível, e o possível está face ao
fim. Um homem que não vê a
possibilidade da morte de uma civilização ou do mundo não é um
homem livre, mas, de alguma forma, condicionado pelo idealismo.
Folha - Como o sr. analisa a situação da América Latina e do Brasil?
Virilio - Sou bastante inquieto
em relação à América Latina. Meu
pai era italiano, minha mãe, bretã,
sinto-me um "latino-europeu" e
gosto muito da América Latina. É
um continente que esteve na vanguarda de muitos pensamentos e
que sofre terrivelmente. A pressão
que foi feita pela América do Norte sobre a América do Sul ameaça
enormemente o futuro da América Latina. Preocupo-me bastante
quando vejo o destino desses países, e guardo uma enorme esperança no Brasil. Espero que a
América Latina escape ao destino
da África, pelo qual nós, europeus, somos em grande parte responsáveis. Os americanos parecem agir na América Latina como
nós agimos na África. Espero que
a América Latina se salve.
Folha - Pessoalmente, como o sr.
vive esses turbulentos tempos?
Virilio - Vivemos um estado de
violência que ainda vai durar algumas dezenas de anos. Acredito
que o Pânico Frio ainda vá durar
uns 20 anos. O mundo que virá
depois disso eu não verei, pois tenho 72 anos. Tenho a impressão
de que um mundo está acabando,
e um outro vai começar. Eu vou
acabar junto com esse mundo que
está terminando. É o meu tempo.
Mas não é nada triste. É apenas
impressionante. Não devemos
nos desesperar. Creio que a grandeza de nossa época seja a de enfrentar acontecimentos de extrema gravidade. Em Madri, aqueles
que reivindicaram o atentado disseram "vocês, os ocidentais, escolheram a vida; nós escolhemos a
morte". Creio que, hoje, possamos adotar como slogan "viva a
vida!". Esse é o verdadeiro slogan,
da esperança, contra os kamikazes e os suicidas. Viva a vida.
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